Folha de S. Paulo


Fluxo de refugiados estimula interesse de jovens pela identidade árabe

Karime Xavier/Folhapress
A palestina vinda da Síria Mona Hammad, 54, com o neto brasileiro Carlos Mhanna, de dois meses, na abertura do Festival Sul-Americano de Cultura Árabe
A palestina vinda da Síria Mona Hammad, 54, com o neto brasileiro de dois meses, em São Paulo

Cercados por comida, música e dança árabe no Brasil, jovens dessa comunidade têm renovado seu interesse pela cultura dos ancestrais. Contribui para o aumento da curiosidade o fluxo recente de sírios para cá, fugidos do conflito no país.

As irmãs Lara, 27, e Angel Daher Rassi, 25, ambas formadas em administração, fizeram da cultura que corre nas veias um negócio. Com uma terceira sócia, abriram a Mici, serviço de entrega de esfihas em São Paulo, Brasília, Palmas e Goiânia.

Regina Daher Rassi, a "bisa", diz Lara, é autora da receita original das esfihas folhadas. "Minha bisavó", em árabe, é "m'ceti". Uma bisneta que não conseguia pronunciar a palavra chamava Regina de "mici", e o nome pegou na família.

As esfihas são produzidas pela herdeira da receita, a avó Angel Daher Rassi, 78, dona de bufê em Goiânia. Fazer comida libanesa, diz, é tradição familiar, agora transmitida às netas.

"Aprendi aos dez anos, na cozinha com minha mãe." Seus pais, primos de primeiro grau, saíram do interior do Líbano e se instalaram no interior do Goiás em 1910.

Eles vieram na primeira onda de imigração árabe para o Brasil, que começou na segunda parte do século 19 e se intensificou entre 1870 e 1930. Os imigrantes desse período saíram do antigo Império Otomano (da região onde hoje é principalmente Síria e Líbano), e, em menor medida, da Palestina.

As motivações para deixar a terra natal eram sobretudo econômicas, na esteira dos grandes fluxos migratórios europeus para as Américas, diz Cecilia Baeza, especialista em migrações árabes para a América Latina e professora de relações internacionais da PUC-SP e da FGV-SP.

Cristãos de classe média, em sua maioria, esses imigrantes vieram em navios e se fixaram em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba.

"Os primeiros imigrantes árabes se especializaram no comércio porque vinham com essa experiência, já que o Oriente Médio sempre foi um ponto comercial importante. E o Brasil, nessa época, era uma economia agroindustrial, então havia uma lacuna econômica que eles preencheram", diz Baeza.

Daí a abertura de lojas de tecidos e alimentos na rua 25 de Março, em São Paulo, onde até a metade do século falava-se quase só árabe.

Divulgação
Foto antiga da rua 25 de Março, exibida no 4º Festival Sul-Americano da Cultura Árabe, em 2013
Foto antiga da rua 25 de Março, exibida na edição de 2013 do Festival Sul-Americano da Cultura Árabe

De tão simbólica, a rua definiu a data do dia nacional da cultura árabe no Brasil, celebrado nesta sexta-feira (25), que marca 136 anos da imigração desse povo.

Em São Paulo e em outras cidades do país, o Festival Sul-Americano de Cultura Árabe, que começou dia 18 e vai até dia 31, comemora a data promovendo contação de histórias, dança, oficinas de caligrafia e exposições, entre outras atividades.

Uma das expositoras é Janaina Elias, 30, artista plástica que, com um cálamo, instrumento de junco usado na caligrafia árabe, faz "retratos caligráficos", inserindo a escrita em gravuras das pessoas que retrata.

Interessada pela cultura desde pequena, a artista começou a estudar o alfabeto árabe sozinha, aos 13, embora nunca tivesse certeza da origem do seu sobrenome, que é comum na comunidade, mas um mistério em sua família. Hoje, ela consegue se comunicar na língua.

REFUGIADOS

Também participam do festival grupos de refugiados que se instalaram no Brasil, vindos da Síria, principalmente. Até setembro de 2015, viviam aqui nessa condição 2.097 sírios, segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (Ministério da Justiça).

Diferentemente dos primeiros imigrantes árabes, eles são, em sua maioria, muçulmanos sunitas, e venderam tudo para chegar ao país.

"As migrações mais antigas beneficiam os novos no sentido de que passam uma imagem positiva do árabe. Eles são vistos como empreendedores, trabalhadores. É uma grande sorte para os refugiados atuais, porque chegam em um contexto em que não há um estereótipo negativo, diferentemente do que acontece na Europa", afirma Baeza.

Marcelo Haydu, fundador da ONG Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado), em São Paulo, diz observar um interesse regular da comunidade árabe local em ajudar os refugiados –há voluntários em mesquitas, por exemplo, ou grupos como o Movimento de Ajuda aos Irmãos Sírios, que inclui 15 entidades de origem sírio-libanesa, como o Hospital Sírio-Libanês. O grupo reúne doações para distribuir aos recém-chegados.

Haydu conta que houve um "boom" de ligações e doações quando circulou a imagem do menino curdo da Síria Alan Kurdi, 3, que morreu afogado tentando chegar à Europa com a família.

Para Samira Osman, professora de história da Ásia da Unifesp, há uma curva identitária da comunidade árabe no Brasil, em que a identidade declina em alguns momentos e sobe em outros, quando um acontecimento intensifica esse laço. Isso acontece hoje, com o conflito sírio e os refugiados, e em outras ocasiões, como quando Israel invadiu o Líbano em 2006 e jovens da comunidade libanesa protestaram em São Paulo.

A identidade árabe da socióloga Aline Khoury, 26, despertou quando ela fez mestrado na França, onde era vista pelos colegas mais como árabe do que como brasileira. Até então, diz, nunca tinha se identificado como árabe, embora tivesse crescido comendo charuto, tabule e quibe no Natal. "Só descobri que as pessoas não faziam isso quando passei o feriado na casa do meu namorado, com mais de 20 anos" diz, rindo, Khoury, neta de sírios que chegaram ao Brasil na década de 1950.

Aos 23 anos, quando voltou ao Brasil, ela buscou entender melhor a cultura: fez aula de árabe e de dança do ventre e leu mais sobre o islã. Viajou para a Palestina, onde trabalhou como voluntária em uma ONG. Na volta, deu continuidade a esse trabalho na Cáritas, em São Paulo, instituição ligada à Igreja Católica que acolhe refugiados. Hoje, faz doutorado na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, onde pesquisa refugiados e imigrantes no Brasil.

Durante o trabalho voluntário, ela diz que sentia um laço maior com os refugiados sírios, porque lembrava do avô falando sobre Síria. "Me sensibilizava mais pela memória de meus avós. Não que me identificasse com refugiados: via neles um lugar que eu queria que estivesse como meu avô o deixou."

Para Osman, da Unifesp, a identidade árabe dos descendentes brasileiros nunca se rompe, apesar das oscilações. "É difícil um descendente árabe que não se identifique com a cultura. Pode não ter conhecido o avô, mas sabe que era libanês. Há sempre essa memória ancestral."

FERNANDA PERRIN, 24, é formada em Relações Internacionais
JULIANA KALIL GRAGNANI, 24, é bisneta de libaneses e estudante de árabe


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