Folha de S. Paulo


Grafiteiro pinta em córregos e galerias pluviais e só quer saber de água

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José Augusto Amaro Capela, o Zezão, é uma ilha. Não por viver isolado: tem mulher, filho a caminho e dois cachorros da raça daschund, Foguinho e Paçoca. Mas por estar cercado de água.

Na realidade, uma mistura de água, dejetos humanos, animais em decomposição, rejeitos industriais e lixo. Esse é o ambiente que o grafiteiro de 44 anos encontra nos córregos e galerias subterrâneas de São Paulo, locais escolhidos por ele para abrigar suas intervenções.

A primeira incursão aconteceu em 2000, no córrego Cabuçu de Baixo, quando passava por uma fase difícil. Seu pai morrera, sua mãe lutava contra um câncer. Seu parco rendimento vinha de um emprego como motoboy. "Foi essa tristeza que me levou para a merda, literalmente."

Na época, o grafite não era celebrado como hoje: "Era motivo de enquadro". "Fui parar no esgoto para me isolar, pintar escondido, sem ninguém encher."

Das andanças no subterrâneo, acabou surgindo uma consciência ambiental, conta. "Comecei a enxergar esse lugar e a entender o porquê das enchentes, vi a sujeira varrida para debaixo do tapete, o descaso do poder público com o saneamento, a falta de manutenção."

Quando começou a pixar, Zezão espalhava a palavra "vício" pelos muros de São Paulo com a intenção de marcar território e dizer "não estou satisfeito". "Venho de família pobre e sempre fui ignorado pela sociedade".
Veio, então, a inflexão.

Adriano Vizoni/Folhapress
Grafite de Zezão no córrego do Mandaqui, na zona norte de São Paulo
Grafite de Zezão no córrego do Mandaqui, na zona norte de São Paulo

Refletiu sobre São Paulo e decidiu que não colaboraria mais com essa "coisa negativa". Doravante, usaria sua arte para afirmar: "Este lugar precisa de ajuda".

A transformação atingiu seu traço. Os desenhos, descritos como ondas, têm origem nas pixações do passado. Com variações, o "vê" ganhou corpo e foi virado de ponta-cabeça, o "cê" criou tentáculos, que envolveram as letras ao redor, o "i" virou algo similar a uma espiral.

Zezão partiu para o abstrato e o mundo. Expôs em galerias e pintou em ruas dos EUA e da Europa. Hoje, vive do grafite e mantém um estúdio na região da Cracolândia.

A pedido da Folha, criou o desenho que ilustra a capa deste caderno, no córrego do Mandaqui, que passa sob a marginal Tietê. A reportagem acompanhou o processo. Para chegar ao riacho é preciso atravessar uma pista da própria marginal, por um trecho sem faixa de pedestres. A solução é correr.

Pouco após colocar o pé na água, vê um gato morto, provavelmente arrastado pelas chuvas que atingiram a cidade nos dias anteriores.

O grafiteiro para a cerca de dois metros da parede escolhida, encarando-a. Agita a lata de spray com a mão direita, protegida por uma luva preta, e avança. Tsss. Surge um círculo azul. Em dez minutos, brotam tentáculos, à esquerda e à direita.

Fala pouco, para manter a concentração, diz. "De vez em quando, me perco nesse labirinto." O desenho de dez metros de largura fica pronto em duas horas. "Vou fazendo. Às vezes, gosto, às vezes, não. É a vida".

VÍDEO: fotografia ADRIANO VIZONI | edição DIEGO ARVATE


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