Folha de S. Paulo


Número de mortes suspeitas fora do balanço de homicídios explode em SP

Um morador de rua é encontrado de bruços em meio a uma poça de sangue. Ao lado do corpo, os policiais recolhem dois "estojos deflagrados" de pistola calibre 380.

O que poderia ser mais um caso de homicídio doloso no Jardim das Imbuias, no extremo sul de São Paulo, foi registrado pela polícia paulista como uma "morte suspeita".

Assim como fez com esse morador de rua em novembro de 2012, a polícia paulista registrou outras 60.049 mortes com essa mesma classificação entre 2012 e 2015, de acordo com dados informados à Folha pela Secretaria da Segurança Pública.

Esses registros, que não fazem parte das estatísticas divulgadas todos os meses pela gestão Geraldo Alckmin (PSDB), vêm crescendo ano a ano, na contramão dos casos de homicídio, que acumulam quedas nos balanços usados como bandeira do governo na área da segurança pública.

De 2012 a 2015, enquanto a gestão tucana comemorava uma queda de 22% nos assassinatos, essas mortes duvidosas e fora dos balanços oficiais cresceram 51%.

Quando a polícia considera uma ocorrência como uma "morte suspeita", ela indica não saber se houve um homicídio ou suicídio, por exemplo. O caso não entra em nenhum dos indicadores criminais divulgados e fica nesse limbo contábil.

O governo diz que essas mortes são investigadas e, quando esclarecidas, reclassificadas. Mas levantamento feito pela Folha a partir dos dados divulgados mostra que as estatísticas oficiais praticamente não mudam.

DESVIO ESTATÍSTICO - Número de "mortes suspeitas" no Estado de SP é quase quatro vezes maior que o de homicídios

Em 2014, por exemplo, o número de casos de homicídio divulgado à época foi de 4.294 em todo o Estado. Hoje, mais de um ano depois, esse número foi atualizado para 4.293 –um a menos.

Nesse mesmo período, SP registrou um total de 15.820 casos de "mortes suspeitas".

Ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que reúne especialistas de todo o país, o governo informou dado diferente. Em resposta a um pedido feito pela ONG via Lei de Acesso à Informação, afirmou que foram registradas 22.027 "mortes suspeitas" em 2014.

Para especialistas, a tendência oposta do número de casos de "mortes suspeitas" e de homicídio coloca em dúvida os dados oficiais.

"Quando há comportamentos divergentes de números que aparentemente estão relacionados, é preciso auditar e radicalizar a transparência", diz Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do fórum.

Para checar os dados, a Folha solicitou acesso aos registros policiais, mas os pedidos foram negados pelo governo. O jornal recorreu à Justiça e aguarda uma decisão.

"Em vez de comemorar a queda da violência, percebemos que essa queda não é tão acentuada assim e precisa ser relativizada", afirma Lima.

DADO EM XEQUE

Mesmo que uma minoria das "mortes suspeitas" seja na realidade homicídio, dados oficiais seriam alterados se elas fossem reclassificadas.

Numa projeção hipotética em que, de cada dez "mortes suspeitas" de 2015, só uma tenha sido um assassinato, o dado oficial de homicídios passaria de 3.757 para 5.619, e a taxa por 100 mil habitantes pularia de 8,73 para 13,05.

Nesta quinta (3), o jornal "O Estado de S. Paulo" informou que 21 assassinatos na capital em 2015 foram registrados como "morte suspeita" ou "lesão corporal seguida de morte". Assim, ficaram de fora do balanço oficial.

Em 2005, a Folha revelou situação similar. À época, 14 homicídios foram registrados como "encontro de cadáver" e "morte a esclarecer". Naquele ano, o governo definiu que casos de cadáveres com sinal de violência deveriam ser classificados como homicídios.

OUTRO LADO

O governo Geraldo Alckmin (PSDB) afirma que "poucas ocorrências" registradas inicialmente pela polícia paulista como "morte suspeita" precisam ser reclassificadas, pois a maioria dos casos não é de crimes como homicídio.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública diz seguir uma norma de 2005 que orienta o uso da categoria "morte suspeita" para uma série de ocorrências de óbito que não configuram "de imediato crimes de homicídio, latrocínio ou lesão corporal seguida de morte".

Desta forma, o número de casos inclui também situações como "acidentes de trânsito, doenças, quedas acidentais, dúvidas sobre suicídio e aborto e também mortes naturais" –registradas a pedido de médicos ou familiares por "questões securitárias".

Segundo o governo, a reclassificação das mortes inicialmente consideradas duvidosas ocorre quando delegados responsáveis pela investigação, "no exercício de sua autonomia funcional", entendem que isso é necessário.

A mudança também pode ser feita quando os policiais são "alertados da necessidade de reanálise" pela Coordenadoria de Análise e Planejamento –setor da secretaria responsável pelas estatísticas de criminalidade do Estado.

O governo não informou quantas das 60.050 "mortes suspeitas" entre 2012 e 2015 foram reclassificadas como crimes. Também não informou se essa reclassificação ocorre apenas no inquérito policial ou se é atualizada nos balanços na internet.

A secretaria só forneceu dados de 2015. Segundo eles, das 18.620 "mortes suspeitas" registradas no Estado no ano passado, apenas 52 foram reclassificadas como homicídio doloso e 12 como latrocínio (roubo seguido de morte) e incluídas nos números oficiais.

Como o governo vem negando reiteradamente o acesso a dados dos boletins de ocorrência e à lista de mortos no Estado –solicitados pela Folha–, não é possível checar se esses crimes foram incluídos nas estatísticas.

O governo não soube informar quantas reclassificações ocorreram nos outros anos –chegou a enviar tabela com dados da capital de 2012 e 2013, mas depois recuou.

Também não soube explicar por que informou oficialmente ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública um número ainda maior de "mortes suspeitas" no ano de 2014.

A Folha pediu no mês passado à secretaria, por meio da assessoria de imprensa, os dados de "mortes suspeitas" desde 2001, mas eles foram negados na ocasião sob a alegação de que eram "em grande quantidade" e que o pedido demandava "um período longo para ser respondido".

A resposta dizia que o canal mais adequado para o pedido seria o sistema da Lei de Acesso à Informação.

A recomendação foi seguida no dia 18 de fevereiro, mas o pedido ainda não foi respondido. O governo Alckmin tem negado todas as solicitações de dados públicos de segurança feitas pela Folha.

Após a reportagem enviar dados obtidos pelo fórum de segurança, a secretaria forneceu parte das informações nesta quinta (3).


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