Folha de S. Paulo


Gestão Alckmin calcula taxa de homicídios fora do padrão mundial

A metodologia usada pelo governo paulista para calcular a taxa de homicídios do Estado não segue padrões usados por outros Estados do país e os recomendados por organismos internacionais.

Ao divulgar as estatísticas de 2015, a gestão Geraldo Alckmin (PSDB) destacou que "a relação de mortes intencionais por grupo de 100 mil habitantes foi de 8,73". Apesar de a divulgação falar em mortes, a taxa é calculada com base no número de casos, e não de vítimas –cada registro pode ter mais de um morto.

Uma chacina com oito mortes, como ocorreu no ano passado em Osasco, na Grande São Paulo, é considerada como só um caso.

Do ponto de vista da organização policial isso pode fazer sentido porque a investigação de uma chacina é única.

Mas ao usar este critério para calcular a taxa, os indicadores de São Paulo deixam de ser comparáveis aos divulgados por outros locais.

A Folha consultou entidades como OMS (Organização Mundial da Saúde), UNODC (Escritório da ONU sobre Drogas e Crime), EuroStat (agência estatística da União Europeia) e FBI (polícia federal dos EUA). Todas responderam que consideram a quantidade de vítimas, e não de casos, para calcular a taxa de homicídios.

Joel Silva - 14.ago.2015/Folhapress
Secretário de segurança Alexandre de Moraes, durante entrevista em agosto
Secretário de segurança Alexandre de Moraes, durante entrevista em agosto

Além disso, a maioria dos órgãos considera no cálculo outras mortes violentas intencionais, como latrocínios (roubos seguidos de morte).

Seguindo esse padrão, São Paulo teria encerrado 2015 com taxa de 10,03 –maior que a divulgada, mas, mesmo assim, em trajetória de queda nos últimos anos.

"O que São Paulo faz é calcular uma taxa de boletins de ocorrência, só que chama incorretamente de taxa de homicídios", diz Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador da área de estudos da violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

"O mundo todo usa vítimas, menos São Paulo. O pior é que a secretaria tem os dados, publica na internet, mas decide calcular a taxa de outra forma."

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública recomenda um padrão de também incluir na taxa as mortes decorrentes de intervenção policial.

Cada Estado segue uma regra, mas os dados já são apresentados dessa forma, por exemplo, no Distrito Federal.

Por este método, a taxa paulista seria de 11,92 mortes por 100 mil habitantes e a média nacional, de 28,85 (dado de 2014, último disponível).

"Ao usar os casos, São Paulo olha para o crime, não para a violência", afirma Renato Lima, vice-presidente do fórum.

"Para efeito de análise do fenômeno de mortes violentas, pouco importa o tipo penal, se elas são cometidas pela polícia, se legais ou não, pois isso depende de cada país. Em termos do acompanhamento do fenômeno da violência, usar os casos não é o método mais adequado. É uma decisão política, só que, quando se faz 'release' apresentando a taxa de outra forma, que não é comparável com outros locais, você confunde."

"Não é correto trabalhar com a taxas dessa forma porque não é uma norma nacional ou internacional. Sou o primeiro que reconheço a queda dos homicídios em São Paulo, que é um exemplo a ser seguido. Mas qualquer um que for comparar a taxa divulgada com outros locais, que fazem pelas vítimas, vai se enganar", afirma Waiselfisz.

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TAXAS DE HOMICÍDIO EM SÃO PAULO - Com outros métodos, índice por 100 mil habitantes é maior do que o oficial

NOTAS
0: Cálculo utilizado pela SSP, considera apenas os casos de homicídio doloso
1: Padrão internacional, considera o número de vítimas de homicídio doloso e latrocínio (roubo seguido de morte)
2: Método recomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, considera as vítimas de homicídio doloso, latrocínio e a letalidade policial. Os dados de letalidade usados nas taxas de 2011 e 2012 constam nos respectivos anuários do fórum, as taxas de 2013 e 2014 foram publicadas no anuário de 2014 e a taxa de 2015 considera os dados de letalidade divulgados pelo governo
3: Considera o número de mortes registradas no DataSUS com causa "agressão" (códigos X85-Y09 da Classificação Internacional de Doenças); dados de 2014 são preliminares e os de 2015 ainda não foram divulgados

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"ZONA EPIDÊMICA"

Pelos métodos desses órgãos, São Paulo ainda estaria na chamada "zona epidêmica" de homicídios, definição usada nos últimos anos em divulgações do governo para se referir à taxa acima de 10 mortes por 100 mil habitantes.

Desde meados de 2008, quando a contabilidade oficial começou a aproximar São Paulo desse índice, essa classificação tem sido usada pelo Estado –e atribuída à OMS.

Foi assim em outubro de 2011, por exemplo, quando a comunicação governamental destacou que "com 150 homicídios a menos que nos 10 primeiros meses no ano passado, São Paulo apresenta taxa abaixo de 10 homicídios por 100 mil habitantes, fora, portanto da zona considerada epidêmica pela OMS (Organização Mundial de Saúde)".

Especialistas, imprensa (incluindo a Folha) e até relatórios do Pnud (programa da ONU para desenvolvimento) passaram reproduzir a ideia.

Questionado sobre esse assunto, a OMS negou adotar a classificação de "zona epidêmica" de homicídios. "Não sei de onde surgiu essa ideia", afirmou Alexander Butchart, coordenador de Prevenção à Violência da organização.

Ele explica que a incidência de mortes intencionais é uma importante questão de saúde pública, mas que o conceito não faz sentido no contexto paulista.

"Há muitos anos a OMS não utiliza o termo 'epidemia', no seu lugar usamos 'surto' ['outbreak', no inglês] para se referir ao surgimento ou aumento repentino de uma doença, como zika ou ebola. O aspecto fundamental na definição de um surto é a ocorrência de casos além do que seria normalmente esperado em determinada área geográfica ou período de tempo", afirma.

"Portanto, apesar de que 'surto' possa ser usado para se referir a um aumento repentino de homicídios, isso não se aplica ao caso de São Paulo, onde as taxas de homicídio, apesar de parecerem estar caindo, têm se mantido relativamente altas por muitos anos."

O escritório brasileiro do Pnud disse que a atribuição do termo à OMS foi um erro, mas que considera a taxa de 10 mortes por 100 mil habitantes como "limite aceitável".

O QUE DIZ O GOVERNO

A Secretaria da Segurança disse adotar "critério internacionalmente reconhecido de número de ocorrências por 100 mil habitantes". "Essa metodologia é adotada em todos os Estados brasileiros desde 2001 e na maioria dos países, sendo, igualmente, o critério adotado pelo FBI."

O FBI informou à Folha usar a quantidade de vítimas, e não de casos, para calcular a taxa de homicídios.

"As ocorrências de homicídio doloso, estupro, tráfico humano e lesão corporal dolosa são considerados crimes contra a pessoa. Para esses crimes, uma ocorrência é contada para cada vítima", afirma Stephen Fischer Jr., porta-voz da Divisão de Informações de Justiça Criminal do FBI.

Nesta quinta (25), o secretário Alexandre de Moraes disse que os dados brutos de casos e vítimas são divulgados –e que a taxa pode ser calculada pelos interessados. "É muito simples: nós temos o número de vítimas, basta dividir pelo número de 100 mil habitantes que vai chegar no número que quiser."

Ele deu versão diferente da nota oficial em relação aos outros Estados. Disse que, das 27 unidades da Federação, 22 não calculam oficialmente a taxa de homicídios.

A secretaria diz ainda que não inclui as mortes causadas pela polícia na taxa de homicídios pois é a metodologia utilizada pela "grande maioria dos países".


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