Folha de S. Paulo


Vírus da zika pode ter mudado antes de chegar ao Brasil, diz virologista

Há anos estudando o ebola e o marburg em Uganda, o virologista americano naturalizado israelense Leslie Lobel, 59, se voltou, recentemente, a um vírus que ele e a maior parte dos colegas achava quase inofensivo: o da zika.

Em cooperação com especialistas de diversos países, ele corre contra o tempo para descobrir se o vírus é mesmo responsável por doenças graves como a microcefalia.

Hoje Lobel colhe amostras de sangue de pessoas que sofrem com zika em Uganda, onde colabora com um laboratório em Entebbe, próximo à floresta Zika, que deu origem ao nome da doença.

Divulgação
Leslie Lobel, virologista da Universidade Ben Gurion (Sul de Israel) Foto: Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Para Leslie Lobel, é mais urgente provar a ligação entre zika e microcefalia do que desenvolver vacina

Em poucas semanas, ele estará no Brasil para comparar essas amostras com as de pacientes brasileiros.

Para Lobel, é mais urgente provar a ligação entre zika e microcefalia e outras doenças graves do que desenvolver uma vacina.

Ele deu entrevista à Folha, por telefone, de seu laboratório na Universidade Ben Gurion, na cidade de Beer Sheva, no sul de Israel. A seguir, leia os principais trechos:

*

Folha - O vírus da zika foi detectado há cerca de 80 anos em Uganda. O senhor sabe se causou microcefalia ou outras condições graves nesse país?
Lelie Lobel - Não que eu saiba. Esse vírus nunca tinha causado problemas. Foi detectado em Uganda em 1947 e só costumava causar uma doença leve.
Ninguém realmente o estudou. Algumas pessoas levantaram o conceito de que, na África, há uma índice maior de abortos naturais e mortalidade infantil, então não percebemos os efeitos do vírus.

Quando o senhor começou a se interessar pelo assunto?
Recentemente. O mundo todo está de olho. A real preocupação só começou por causa dos casos de microcefalia no Brasil e a possível ligação com o vírus.
Em retrospecto, pode ter havido casos de microcefalia na Polinésia Francesa, onde também houve um surto entre 2014 e 2015.

O senhor considera que há alguma ligação entre zika e microcefalia?
Há tantas coisas que podem estar associadas ao atual surto...
Pode haver uma toxina no ambiente causando a microcefalia concomitantemente com um surto do zika, fazendo com que as pessoas tomem conclusões erradas. Não sabemos.

O senhor acredita que houve uma mutação no vírus do zika entre a Uganda e o Brasil?
Provavelmente. Minha pergunta é se essa mutação criou uma nova patologia no Brasil e na América Latina.

Temos um vírus em diferentes localidades no mundo que parece estar causando diferentes padrões de doença. Temos a genética do vírus e a genética do hospedeiro entrelaçadas de forma que vemos diferentes patologias.

Parece ser uma combinação do fato de que os brasileiros têm uma genética diferente da dos africanos e o vírus pode ter passado por uma mutação.

O que o senhor acha da possibilidade de o vírus ser transmitido por relações sexuais, transplantes sanguíneos ou também pela saliva?
Não é impossível. Mas, quando você lida com um surto, a transmissão é tão alta pelo inseto que é difícil acompanhar os eventos mais raros.

O senhor acha que a comunidade internacional deveria se unir para desenvolver logo uma vacina?
No caso deste surto, é tarde demais para isso. Temos que desenvolver uma vacina em algum momento, sem dúvida, mas, antes disso, investir na pesquisa de prevenção de futuros surtos. É muito difícil conseguir que governos entendam problemas antes que eles aconteçam. As pessoas só apagam incêndios. Mais urgente ainda é determinar se há uma clara relação de causa e efeito entre zika e microcefalia ou outras doenças graves. Não sei se temos que gastar dinheiro numa vacina antes de determinar se ela é realmente necessária.

Mas uma vacina não é urgente nesse momento?
Quando aparece um problema como o da zika, as pessoas querem uma vacina para ontem. Mas isso não vai acontecer. Vai demorar de cinco a dez anos. Desenvolver uma boa vacina não é simples. Se você olhar a história da vacinação, houve diversos casos de desastres nos quais muitas pessoas morreram. Temos que ser cuidadosos.

O senhor teme que haja um surto em outros lugares do mundo? Teme que haja propagação, por exemplo, após a Olimpíada do Rio?
Acho que não há motivo para histeria, no momento. Não acho que esse surto de vírus deve impedir as pessoas de irem à Olimpíada.

Obviamente, mulheres grávidas não devem ir. Mas as outras pessoas precisam apenas tomar cuidados gerais contra picadas de mosquito. Elas até podem ser infectadas e levar o vírus para seus países de origem, mas as chances de transmissão nas regiões sem o ecossistema do vírus são mínimas.

Esses ecossistemas podem mudar?
Podem. No futuro, o alcance do inseto e do hospedeiro pode mudar, exatamente como o que aconteceu com o vírus do Oeste do Nilo, também originalmente de Uganda, que emergiu em Nova York (1999) e se espalhou no hemisfério norte.

Nunca podemos dizer 'nunca' em medicina e ciência. O aquecimento global pode promover a propagação de insetos e de vírus.


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