Folha de S. Paulo


O mundo está perdendo a guerra contra o mosquito, diz virologista

Único brasileiro a participar do comitê de especialistas da OMS (Organização Mundial de Saúde) que levou à recente declaração de emergência mundial em saúde, o virologista Pedro Vasconcelos não tem dúvidas de que o vírus da zika é a causa do avanço da microcefalia (má formação no cérebro de bebês).

Ele critica, no entanto, a demora na coleta de amostras que permitiriam investigar essa relação logo que foi apontado o aumento de casos.

Vasconcelos, 58, é pesquisador do Instituto Evandro Chagas, um dos primeiros laboratórios públicos a identificar a relação da zika com casos da má-formação. Ele falou à Folha por telefone, durante visita à Universidade do Texas (EUA), onde busca parceria para a vacina contra o vírus.

Para ele, não só o Brasil, mas o mundo está perdendo a guerra contra o mosquito Aedes aegypti. E outras doenças transmitidas pelo mesmo vetor têm sido negligenciadas. "A dengue foi banalizada. Mas é muito mais grave que chikungunya e zika juntos", afirma.

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Folha - A OMS declarou emergência mundial em saúde. Você concordou com a decisão?
Pedro Vasconcelos: Plenamente. Defendi essa posição. Ela alerta os países a tomarem iniciativas e melhorarem o controle vetorial, que é a única coisa que se pode fazer hoje para evitar a entrada do vírus zika ou diminuir sua incidência. Isso dá reforço para a obtenção de aporte financeiro. E dá poder para ministérios de saúde agirem, com o respaldo da maior instituição de saúde do mundo.

O Instituto Evandro Chagas foi um dos primeiros a comprovar a relação entre zika e microcefalia por meio de um bebê do Ceará. Já a OMS diz que ainda faltam provas.
Entendo a posição da OMS. O que as organizações se ressentem é de um maior número de casos com diagnóstico comprovado de zika. E isso se deve à falta de coleta de amostras durante os primeiros meses em que ocorreram esses casos. Não houve esse cuidado. O número atual [de casos confirmados] é muito baixo: menos de 10%.

O que deveria ter sido coletado e não foi?
Logo ao nascer, tinha que ser coletado sangue e LCR (líquido cefalorraquidiano). Agora faz-se sorologia, que não é tão específica como o PCR (que identifica o genoma do vírus). Tivemos, na quinta (4), mais 12 casos de bebês do Recife que nasceram com microcefalia e, neles, constatamos anticorpos IgM no LCR, ou seja, dentro do sistema nervoso. É indicativo de infecção recente pelo agente.

Zika é causa da microcefalia?
Não tenho dúvidas. Mas a outra pergunta é: todos os casos investigados de microcefalia no Brasil são causados pelo vírus zika? Provavelmente não, pois há outras causas: toxoplasmose, citomegalovírus, sífilis. Mas esse aumento intenso foi pelo zika.

No início, autoridades diziam que o vírus não preocupava. Houve erro de avaliação?
O zika surpreendeu o mundo, não só o Brasil. Antes da primeira epidemia, em 2007, nas ilhas Yap, na Micronésia, tínhamos pouquíssimos casos de zika na literatura médica. É um vírus que causava um quadro febril, quando muito, e vinha acompanhado de um exantema (manchas vermelhas), mal-estar por dois, três dias e acabou. Não havia preocupação em estudar muito esse vírus porque não tinha a vinculação de doença severa em humanos. O apelo que tem o custo social e pessoal para as famílias dessas crianças sensibilizou autoridades mundiais e resultou nesse alvoroço.

Mas ainda restam muitas dúvidas sobre o vírus da zika.
Existem muitas perguntas. Não se sabe como o vírus atravessa a placenta, que célula permeia, qual mecanismo ele usa para atravessar a barreira hematocefálica (estrutura que protege o sistema nervoso). Vemos, nos poucos casos que temos de necrópsia, que os neurônios são destruídos. Atinge as células nobres do sistema nervoso central. E tem causado mortes em pessoas com doenças autoimunes. São poucos casos, mas tem. Precisamos de estudos de neuropediatria para quantificar o grau de lesão das crianças. Há um monte de perguntas para uma gama imensa de especialistas.

Alguma é mais urgente?
Os mecanismos de patogenia (evolução da doença). E também o porquê de permanecer por mais tempo na urina e no sêmen, e qual a participação desses outros mecanismos de transmissão na difusão do vírus. As pessoas estão tomando sangue e não é feito exame para zika, porque não se dispõe. Mas será que não está havendo transmissão nos bancos de sangue? Um dos primeiros casos em São Paulo foi de transmissão sanguínea.

O senhor está nos EUA para uma vacina contra a zika. Em quanto tempo podemos tê-la?
Não gosto de prever, mas acho que podemos ter em dois anos essa vacina disponível para testes em humanos, uma previsão bem conservadora.

Quando estaria pronta?
Dependendo das negociações com Ministério da Saúde e Anvisa, daqui três ou cinco anos, não mais que isso.

A Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) estima que o zika afete 4 milhões de pessoas nas Américas. Há áreas mais vulneráveis?
Onde há mosquitos transmissores, como o Aedes aegypti, ou um potencial, como o Aedes albopictus, há risco de transmissão, com ocorrência de surtos. A Ásia, por ser mais populosa e ter grande parte das pessoas em áreas tropicais e subtropicais, é um risco grande. Com a velocidade e a frequência dos voos internacionais, em menos de 24 horas você se desloca para qualquer ponto do mundo.
Já publicamos estudos que mostram que o tráfego aéreo é o maior responsável pela transmissão de agentes virais e infecciosos. Deve ter sido assim que o vírus chegou ao Brasil. O diagnóstico inicial foi em 2015, mas achamos que chegou um pouco antes.

No Brasil há locais com tríplice epidemia: dengue, zika e chikungunya. Qual foi o erro?
O ministro disse que estávamos perdendo a guerra contra o mosquito. Eu diria que o mundo está perdendo a guerra. Não é só no Brasil que isso ocorre simultaneamente. Todos os países hoje sendo anunciados com zika também têm dengue e chikungunya. Há perda global da espécie humana para a espécie Aedes aegypti.

É difícil dizer onde houve erro. As nossas cidades são pouco limpas. O sistema de coleta de lixo não é eficiente. O de fornecimento de água também não. Há acúmulo de água nas casas e de lixo nas ruas. Tudo isso num país tropical onde chove muito, o que tende a aumentar os criadouros do mosquito.

São problemas sérios, mas conhecidos. Se perguntar para uma criança ou adulto como se previne a dengue, muitos têm na ponta da língua. Mas a maioria não faz.

O que pode ser feito?
Educação em saúde e controle vetorial. Diminuir a população de mosquitos para diminuir o número de pessoas doentes, o que diminui as chances do mosquito se infectar. E aí manter esse ciclo. Mas aí vem o problema: o controle vetorial é responsabilidade dos municípios.

Basta que um município não efetue um bom trabalho, e ele bota a perder todo o trabalho daqueles que fizeram o dever de casa. Só temos hoje o controle do vetor, nada mais.

A presidente Dilma disse que a dengue seria como uma gripe, mas o vírus da zika não. Podemos estar minimizando os riscos dessas outras doenças?
A OMS estima a ocorrência de 300 milhões de infecções por dengue por ano, das quais 100 milhões com sintomas. Aproximadamente 50 mil doentes morrem por ano. A dengue é negligenciada. Parece banalizada no mundo todo. Mas é mais grave que chikungunya e zika juntos.

Ocorre que o zika, além de ser novidade, tem a gravidade por fetos serem acometidos de forma severa na gestação. Está criando uma corte de pessoas com limitações graves do sistema nervoso central para o resto da vida, além da ocorrência de abortos, natimortos e mortes de pessoas com doenças autoimunes. Isso tem repercussão intensa. O futuro de um país, afinal, está nas crianças que estão nascendo. Então é algo grave e importante.

Qual a relação entre o vírus da zika e a morte de pessoas com doenças que afetam o sistema imunológico?
Há um caso, na Colômbia, de morte de pessoa com anemia falciforme. E esse caso do paciente que tinha lúpus no Maranhão [e morreu ao pegar zika]. E casos de anemia hemolítica, que detectamos no Pará. O zika é a causa? Provavelmente é. Mas a gravidade do caso está muito associada com a 'doença de base'.

Há uma preocupação principal entre especialistas da OMS?
A possibilidade dessa epidemia das Américas se transformar numa pandemia e passar para outros continentes, especialmente Ásia e África. Seria bastante assustador ter repercussões da ocorrência de microcefalia nessas regiões.


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