Folha de S. Paulo


Com parque e dança folclórica, regiões isoladas de SP têm sossego do interior

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Nesses casos, o clichê se aplica. Nem parece São Paulo. Em um deles, há um coreto; no outro, grileiros; no terceiro, tem até dança folclórica alemã; o último está inteiramente dentro de um parque.

Às vésperas do aniversário de São Paulo, a Folha visitou quatro bairros que estão escondidos dentro da cidade.

Para encontrá-los, é preciso certa paciência. "Ninguém sabe onde é. Tem que explicar com calma para que as pessoas cheguem", conta Ronaldo Massuly, 46, do Jardim Keralux, na zona leste, cercado pela linha do trem e pela várzea do rio Tietê. "Fica escondidinho", alerta Artur Santos, 8, morador do Vila Amélia, conjunto de ruas e casas dentro do Horto Florestal.

Bairros escondidos de SP

Isolados, os bairros aproveitam a rotina e até o cenário de cidadezinhas do interior. Mas também sofrem o aperto da de quem se sente sempre longe de tudo, mesmo estando em São Paulo: hospitais, faculdade, espaços de cultura.

"Há até pouco tempo, não tinha internet. E o sinal do celular parava de funcionar no meio da estrada", conta Kennety Borba, 21, que vive na Colônia Paulista, extremo sul da cidade.

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VILA FIAT LUX

Zanone Fraissat/Folhapress
Jose Carlos Del Vigna e a esposa Helena, moradores da Vila Fiat Lux, bairro da zona oeste
Jose Carlos Del Vigna e a esposa Helena, moradores da Vila Fiat Lux, bairro da zona oeste

Ao lado da marginal Tietê e do acesso para a rodovia dos Bandeirantes, um conjunto de 160 casas experimenta a tranquilidade típica do interior.

É dessa forma que os moradores da pequena Vila Fiat Lux, na zona oeste de São Paulo, descrevem sua rotina.

O bairro foi criado no começo do século 20 para receber os operários da fábrica de fósforos homônima, como conta a diretora Adriana Yañez em seu documentário "Vila Fiat Lux". Faça-se luz, façam-se fósforos, façam-se casas perto do trabalho.

No fim dos anos 60, a companhia se mudou para outro Estado. Com o fim dos empregos, os operários deram lugar a uma nova geração de moradores na região, de perfil de classe média.

Se as casas originais praticamente desapareceram, o clima de comunidade continuou como uma das características principais do bairro.

Sentada no coreto da praça -há imagem mais ligada ao interior?- Maria Helena Camargo del Vigña, 69, relembra com saudade as festas que promoviam nos anos 1970. "Cada um trazia um prato e bebidas, era uma
delícia. Hoje, com a tecnologia, tudo mudou", diz ela, que vive no bairro desde 1973. Ela compartilha um senão de morar lá: "Não tem padaria pertinho".

Para Maria Cristina Marinheiro Yañez, 60, o "bairro já teve grandes altos e baixos", mas ficar lá, diz ela, foi a melhor coisa que fez. "Muitas crianças que cresceram aqui estão voltando para o bairro. Acho que querem que seus filhos sintam a mesma liberdade que tiveram na infância."

Uma reclamação comum entre os moradores é o descaso do poder público: "A prefeitura nos cobra um alto IPTU, mas acha que não fazemos parte da cidade. Se não fossem as contribuições voluntárias, não haveria saco de lixo, pintura do parque, nada", lamenta Yañez.

Ali, é preciso aderir ao faça você mesmo -ou ao façamos todos nós, em conjunto.

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VILA AMÉLIA

Luiz Carlos Murauskas/Folhapress
Vila Amelia, bairro que fica dentro do Horto Floresta, na zona norte de São Paulo
Vila Amelia, bairro que fica dentro do Horto Floresta, na zona norte de São Paulo

São comuns histórias de bairros que nascem a partir da invasão de áreas verdes. Na zona norte de São Paulo, contudo, moradores brincam que ocorreu o contrário: um parque invadiu um bairro.

É a Vila Amélia, conjunto de 11 ruas rodeada pelo parque estadual Alberto Lofgren –o famoso Horto Florestal.

Os primeiros registros do bairro, segundo pesquisa feita pela Associação de Moradores da Vila Amélia (Amova), datam de 1845. Àquela época, era ainda conhecido como bairro do cocho e não tinha a vasta área verde que hoje ostenta: havia no local fazendas de chá e de café. O parque surge só em 1896.

"Vivemos em um oásis dentro de São Paulo, cercados de mata por todos os lados", conta Rosangela Pereira da Silva Marques, 57, moradora da Vila Amélia desde 1970.

Naquela época, era possível que as crianças entrassem livremente na mata. Hoje o bairro tem muros que impedem o acesso direto ao parque.

Para entrar ou sair da Vila Amélia, há só uma via de acesso. "Fica escondidinho", afirma Artur Rodrigues dos Santos, 85, dono da loja Ferramentas Santiago.

"Tem gente que se assusta ao entrar e liga para confirmar se está vindo para o lugar certo quando vem nos visitar", conta Rosangela.

Apesar de escondido, e de ter só uma linha de ônibus –com tempo médio de viagem de 40 minutos até a estação de metrô Jardim São Paulo–, as gerações mais jovens não querem trocá-lo.

É o caso de André dos Santos Cerciari, 24, neto de Artur que pretende permanecer lá. "É um bairro sossegado."

Para os mais velhos, contudo, a tranquilidade era ainda maior sem o ponto final de ônibus, onde se enfileiram veículos à espera da próxima partida. "Trouxe barulho, foi a grande mudança", pondera Waldemar dos Santos, 90.

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COLÔNIA PAULISTA

Moacyr Lopes Junior/Folhapress
Bairro da Colonia, no extremo zona sul de São Paulo, que tem povoamento alemão desde 1826
Bairro da Colonia, no extremo zona sul de São Paulo, que tem povoamento alemão desde 1826

Quando a Segunda Guerra começou, o bairro da Colônia Alemã, no extremo sul de São Paulo, sofreu sua mais profunda mudança. Por medo da perseguição, os moradores transformaram o "hund" em cão e "katze" em gato. Depois disso, o bairro viria a ficar conhecido como Colônia Paulista.

Cercado pela mata da Serra do Mar e de sítios, o bairro tenta hoje recobrar a herança afastada pela guerra.

"A ideia de muitos é retomar a herança das famílias que fundaram o bairro. Uma vez ao ano a gente faz até uma festa com comidas e danças típicas alemãs", conta Márcia Borba, 45, membro de um grupo de dança folclórica.

Os primeiros colonos alemães chegaram à região em 1829. Eles extraíam o palmito, do meio da mata, e os levava em barulhentos carros de bois até o largo São Francisco, no coração de São Paulo.

"Ainda hoje, com a facilidade de automóveis, nos sentimos longe do centro. Imagino como era quando só tinha mata, animais e insetos", diz Mario Reimberg Christe, 62.

A vida ia pacata na Colônia até 1939, com a Guerra. A partir daí, os filhos e netos dos alemães passaram a ser perseguidos. "Nossos antepassados já não tinham nada a ver com isso [a guerra]. Mas muitos passaram a se misturar com os caboclos da região de Santo Amaro, para passar desapercebidos", diz Christe.

"Sinto que o alemão que saiu da terra dele, de um lugar de dificuldade, de constantes guerras, veio em busca de uma nova vida, onde pudesse educar seus filhos com tranquilidade. Hoje me sinto realizado, porque tenho tudo isso. Demorou cinco gerações para que o sonho daqueles alemães se realizasse."

Até hoje, no entanto, os moradores ainda convivem com as marcas do isolamento. Para ir à faculdade, Kennety Borba, 21, passa duas horas e meia dentro de dois ônibus. "É uma área rural, com muito mato, o que é difícil ver no centro. E se Deus quiser, aqui vai ser sempre isolado. O que eu gosto é do sossego."

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JARDIM KERALUX

Adriano Vizoni/Folhapress
Jardim Keralux, bairro cercado pela linha do trem, pelo rio Tietê e por grandes industrias na zona leste de SP
Jardim Keralux, bairro cercado pela linha do trem, pelo rio Tietê e por grandes industrias na zona leste de SP

"Não tem dúvidas, a gente se sente ilhado aqui", sentencia Ronaldo Massuly, 46. Ele cresceu no bairro da zona leste que é cercado pelos trilhos da CPTM, as várzeas do rio Tietê, a sede de uma indústria e o campus da USP leste.

O Jardim Keralux já nasceu enclausurado sobre o terreno de uma antiga indústria de cerâmica, da qual só restou uma enorme caixa d'água e o nome que hoje batiza o bairro.

"Depois que a indústria faliu, ex-funcionários venderam os lotes do terreno. Sem saber, famílias de São Miguel e Penha compraram os terrenos que, na verdade pertenciam aos bancos", conta Massuly.

Quando se viram em uma armadilha, os moradores se organizaram. Determinaram que nenhuma casa seria construída com madeira e telha de amianto, que eram fáceis de serem desocupadas e demolidas em uma eventual desapropriação. As ruas deveriam ser largas, para não ser comparadas com uma invasão.

As desapropriações vieram e, como previsto, derrubou as casas mais frágeis. Surpreendentemente, após cada desapropriação, os grileiros continuaram vendendo os mesmos terrenos a novas famílias.

A situação se tornou insustentável até que, em 1996, os moradores prenderam um dos grileiros. O problema: ele era um delegado de polícia.

"Todo de branco, de óculos escuros e de peruca. Era uma figura esquisita", se lembra a ex-vereadora Ana Martins (PCdoB), 75. "A gente levou o delegado para o DP, mas não queriam nem registrar o B.O. A situação só se resolveu quando chegou um promotor público". O delegado respondeu ao processo em liberdade.

A regularização dos terrenos continua sendo a principal reivindicação dos moradores do Keralux. Outro pleito no bairro que ainda tem ruas de terra é a construção de vias para conectá-lo ao resto de São Paulo, já que seu acesso se dá só por uma rua e duas passarelas que partem da avenida Assis Ribeiro.


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