Folha de S. Paulo


Crispim Calonge, 41

Angolano foge da guerra, mora na rua, estuda e agora ajuda refugiados em SP

RESUMO Aos 16 anos, o angolano Crispim Calonge entrou sozinho em um avião sem saber o destino. Ele fugia da guerra civil que assolava seu país praticamente desde que tinha nascido. Parou na Itália e percorreu quase 20 países até chegar ao Brasil. Viveu nas ruas de São Paulo por nove meses, inclusive já aluno da USP. Hoje, empresário na área de idiomas, dá aula aos refugiados.

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Até hoje esse episódio causa um certo desconforto na minha família. Tinha 16 anos e fui com meu irmão mais novo e minha mãe vender cerveja em Dundo, Angola.

Avistei um avião de resgate de estrangeiros e decidi entrar. Era 1990, no meio da guerra civil. Tudo o que a gente queria era fugir. Perdi meu irmão de vista e avisei a minha mãe que iria embora.

Entrei na aeronave falando inglês para fingir que era estrangeiro. Pediram meu passaporte. Mas respondi que estávamos na guerra e que não tinha documentos.

Entrei sem saber para onde estava indo. O avião parou em Malta, na Itália, onde vivi como refugiado.

Sou das tribos Luba [Congo, de onde vieram meus pais] e Tchokwé [Angola, onde nasci]. Lá, falávamos tchiluba, kimbuldo, umbundo e outras línguas africanas, além do francês e do português. Hoje falo 12 idiomas.

O inglês que me tirou de Angola aprendi na igreja. Minha mãe é católica, os padres me ensinaram inglês. Hoje sou ateu, mas respeito todas as religiões. Na "Terra Nova" [centro de acolhida para refugiados], dou aula para budista, católico, muçulmano. Respeito a todos e peço que façam o mesmo. Foi o desrespeito que fez com que eles deixassem o país deles, não podemos repetir o erro.

Depois da Itália, voltei para Angola, mas a guerra continuava e saí de novo com o pretexto de fazer direito em uma universidade da Rússia.

Como as aulas eram em russo, tive que me virar. Em uns quatro meses estava conseguindo falar. Em uns 15 dias tinha uma namorada russa [risos]. Eu era diferente por ser negro, mas não sofri preconceito. Alguns até me tocavam de curiosidade.

Cheguei ao Brasil em 1995, depois de morar em países do Leste Europeu e nos Estados Unidos, trabalhando como professor e garçom. Vim para a Bahia, depois me mudei para São Paulo, com R$ 150 no bolso. O dinheiro acabou e aí conheci a pobreza.

Morei na rua por nove meses, embaixo da ponte Eusébio Matoso [zona oeste da cidade]. Vivi lá mesmo depois de entrar em letras na USP. Tomava banho no CPUSP [Centro de Práticas Esportivas da USP] e ia para aula. Depois voltava e dormia na rua.

Com uma namorada brasileira, mãe do meu filho mais velho, Oluwasheun ["obrigada Deus", em tchiluba; ele também tem uma filha bebê chamada Ayodele, que significa "alegria que chegou em casa"], passei a morar no Crusp [moradia estudantil].

Quando entrei na USP, a gente era barrado na porta com um "pois não?" Eu respondia que estava indo para a aula. Preconceito racial mesmo eu conheci no Brasil.

É aqui que entro em um restaurante com a minha mulher e o garçom me pergunta se eu sei o preço dos pratos. Minha empresa de idiomas oferece aulas para 370 alunos. São executivos e chefes. Nenhum deles é negro.

Minha família se espalhou pela Europa na guerra, mas quase todos voltaram para Angola [o conflito acabou em 2002]. Não sinto vontade de voltar. Sou "do mundo".

Ganho dinheiro com a empresa, mas duas vezes por semana dou aula de português aos refugiados. Faço por obrigação moral. Se viver no Brasil é difícil, imagina para quem larga tudo e chega aqui sem falar português?

Existem mais lugares em paz do que em guerra. Acredito na bondade das pessoas.


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