Folha de S. Paulo


Morto após voltar ao museu, bombeiro havia apagado chamas 3 horas antes

Era madrugada de terça (22), e a servidora pública Rita de Cássia Cruz, 49, mostrava fotos enquanto esperava o corpo do marido ser liberado no IML. "Ah, que lindo. Meu herói, não acredito", chorava.

Ela é viúva do bombeiro civil Ronaldo P. da Cruz, 39, única vítima do incêndio que destruiu o Museu da Língua Portuguesa, na segunda (21).

O primeiro dia de Rita sem o marido seria entre delegacia, velório e cemitério. Chorou o tempo todo, consolou-se com amigos e parentes.

O último dia de Ronaldo começou às 7h de segunda, ao chegar ao museu onde trabalhava havia três anos. A manhã foi sem ocorrências.

Ao meio-dia, um susto: fogo na estação Luz. "Foi bituca de cigarro que virou um foguinho numa lixeira", conta Antonio Veloso, 24, funcionário da manutenção do museu.

Até aí, tudo bem. Ronaldo apagou o fogo. Seria o último que ele, bombeiro civil há seis anos, conseguiria extinguir.

No rádio, respondeu "QRV" –sigla para "pronto-atendimento", estava livre. Então comeu bolo de cenoura –numa festinha dos funcionários do museu– antes de almoçar a marmita levada pela mulher, Rita. "Ele não gostava de qualquer alimento", conta ela.

Foi a última vez que Rita viu Ronaldo com vida. Eles eram casados há seis anos.

Às 15h50, outro susto: fogo na estação Luz, de novo. "Estou aqui combatendo um princípio [de incêndio]", foram as últimas palavras de Ronaldo no rádio de funcionários do museu.

Não era mais o princípio. O fogo já estava alto. Ronaldo tentou apagá-lo, com extintor e água. "A gente viu que não dava mais para apagar e saiu. Ele tentou mais uma vez, ele voltou para o prédio", relata Antonio.

Por que ele voltou?, era a pergunta que, já no velório – na tarde de terça–, família e amigos tentavam responder. "Ele foi um herói, voltou porque tinha que combater o fogo", diz Alan Felipe, 33, amigo e também bombeiro.

"Ele colocou a profissão à frente da vida. O museu era uma casa pra ele, ele quis proteger o prédio", explica Antonio. "Como bombeiro, ele era muito exigente. Falava para prestarmos atenção na fiação, nos extintores", lembra o colega.

O bombeiro morreu de parada cardiorrespiratória causada pela fumaça.

HINOS E SAMBA

Hinos evangélicos deram o tom do velório de Ronaldo, que deixa um filho e três enteados. O que o bombeiro gostava mesmo era de samba. Por oito anos, tocou cavaquinho no grupo Versatilidade, formado com amigos de Francisco Morato, cidade da Grande SP onde nasceu.

Em um cemitério da zona norte da capital, região onde vivia com Rita, seu caixão foi carregado por sete bombeiros. Havia 11 coroas de flores –uma dos colegas de museu.

Rita diz que Ronaldo não gostaria de vê-la triste. Ontem, por vezes ela sorriu, lembrando do marido. "Mas tá um vazio. À noite, vai dar aquele aperto." Ela alisava o caixão. "Ah, meu amor..."

No enterro, cerca de 50 bombeiros ficaram ao lado do caixão. Cantaram o hino da corporação –alguns choravam enquanto aplaudiam.


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