Folha de S. Paulo


Regra para baianas do acarajé deixa evangélicas apreensivas em Salvador

Fim de tarde, a baiana de acarajé Raimunda Borges Silva, 65, monta seu tabuleiro numa praça na Pituba, bairro nobre de Salvador, e reza um pai-nosso em voz baixa.

"Sou uma serva de Jesus e é a Ele que peço um bom dia de trabalho", diz a baiana, que há dois anos se converteu a uma igreja evangélica e desde então trabalha de camisa, short e lenço.

Desde quarta (2), contudo, Raimunda está preocupada. A Prefeitura de Salvador regulamentou a atividade de baiana do acarajé e determinou que todas elas terão de usar roupas típicas.

O problema é que algumas igrejas evangélicas são contra o uso da indumentária tradicional, porque identificam nas roupas da baiana elementos do candomblé.

A prefeitura alega que é necessário preservar a tradição das baianas do acarajé, um símbolo da Bahia. Desde 2005, o ofício é reconhecido como patrimônio imaterial pelo Iphan (instituto do patrimônio histórico).

"Verificamos que havia muitos ambulantes vendendo o acarajé nas ruas de forma descaracterizada, de avental e camisa comum. Isso não é uma baiana, é só uma vendedora de bolinho frito", diz a secretária de Ordem Pública, Rosemma Maluf. Agora, as baianas terão de usar bata branca, saia e torso na cabeça.

As novas regras tiveram o aval da Associação Nacional de Baianas do Acarajé e de Mingau, mas não escaparam da polêmica. Entre as baianas evangélicas, há até as que rebatizaram o acarajé como "bolinho de Jesus", evitando qualquer associação com a cultura afro-brasileira.

A obrigatoriedade do uso de roupas típicas já faz algumas planejarem uma mudança radical. "Uma colega minha já desistiu do acarajé e vai vender outros lanches. Eu ainda não sei o que fazer, coloco nas mãos de Deus", diz a evangélica Raimunda, dividida entre a orientação da igreja e uma história de 40 anos diante do tabuleiro.

Na praia de Amaralina, Júlia Rodrigues dos Santos, 59, defende a medida. "Não dá para ser baiana de acarajé e trabalhar usando short, avental ou guarda-pó", afirma Julinha, como é conhecida.

Ela diz que o ofício é uma tradição que passa de mãe para filha e não pode ser descaracterizado. Julinha também faz orações antes de iniciar o dia de trabalho, mas segue os preceitos do candomblé: prepara sete acarajés, assenta no chão e oferece aos "erês", divindades que representam as crianças.

Para a prefeitura, o uso das roupas tradicionais não tem relação com a religiosidade. "A fé é questão de foro íntimo, não é uma roupa que vai mudar a religião de ninguém", diz Rosemma Maluf.

De início, a fiscalização será apenas educativa, mas as baianas que não se adequarem poderão ser multadas ou até perder a licença.

As regras também definem tamanho e formato dos tabuleiros, normas de vigilância sanitária, além de impor algumas restrições. No tabuleiro, só será permitido acarajé, abará, cocada, bolinho de estudante, passarinha (baço de boi) ou peixe frito. Cerveja para rebater o ardor da pimenta, nem pensar.


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