Folha de S. Paulo


Em busca de histórias de migrantes em SP, artistas se oferecem para escrever cartas

Luiz Carlos Murauskas/Folhapress
A haitiana Tamie Saint Cyr, 33, se emociona enquanto Juão Nin, 26, escreve a carta
A haitiana Tamie Saint Cyr, 33, se emociona enquanto Juão Nin, 26, escreve a carta

"Sente com a gente, conte uma história, tome um café e escreva uma carta. Nós enviaremos a qualquer lugar do mundo."

Cerca de 600 mil usuários circulam por dia na estação Brás, mas somente 15 pessoas atenderam ao convite do coletivo "Estopô Balaio" na manhã da última quinta (19), quando a Folha acompanhou o trabalho do grupo.

Essas sessões gratuitas de escrita de cartas são parte do processo de pesquisa e criação de um novo projeto da companhia, chamado "nos trilhos abertos de um leste migrante" –inspirado em "As Veias Abertas da América Latina", famoso livro de Eduardo Galeano.

Por ser ponto comum das linhas de trem que vão para a zona leste paulistana, a "Central do Brás" era o local perfeito para a trupe estender um trabalho que há oito meses era feito do lado de fora da estação Jardim Romano, conta a atriz Ana Carolina Marinho, 24.

Comparações com "Central do Brasil", o filme de Walter Salles protagonizado por Fernanda Montenegro como uma escrevedora de cartas, são inevitáveis.

"A grande diferença é que nós enviamos mesmo o que escrevemos", observa com bom humor Marinho –no longa, as cartas escritas pela personagem Dora não eram entregues aos destinatários.

Histórias de migração são o maior interesse do grupo, mas nem sempre esse é o objetivo de quem decide parar nas pequenas mesas dispostas no segundo andar da estação, logo acima das plataformas dos trens.

Houve quem escrevesse para a presidente Dilma criticando a situação do país, quem escolhesse pedir uma visita às instalações do Corinthians ou, mais frequentemente, quem decidisse entrar em contato com programas de TV na busca por uma casa própria ou pelo reencontro com parentes distantes.

"Quando as cartas são destinadas à televisão, me sinto mais responsável, porque é como se a pessoa pedisse um milagre, e sei que provavelmente a maior parte delas não será lida. É como colocar um sonho na jaula dos leões", afirma Marinho.

Independentemente do destinatário, todas são tratadas com a mesma seriedade, em um processo que não é de mera escuta, mas de troca: os integrantes do grupo fazem diversas sugestões do que incluir nas mensagens. Marinho explica que o desejo da companhia é escrever textos mais poéticos que funcionais.

Foi assim, por exemplo, na mais comovente história do dia: a da haitiana Tamie Saint Cyr, 33, que deixou seu país após o terremoto de 2010.

De passagem pelo Brás para se deslocar a um encontro de haitianos, acompanhada de Maria Cecilia Grigio, 62 –que acolheu Tamie e seu filho de quatro anos neste ano–, ela decidiu escrever ao pai, que permanece no Haiti.

As primeiras linhas, em que declarava quanta saudade sentia, não foram fáceis.

A todo momento a carta que ditava em bom português ao artista Juão Nin, 26, era interrompida por lágrimas. O artista estimulava Tamie a contar ao pai quais eram suas impressões de uma cidade tão grande como São Paulo e a destacar aspectos positivos da vida no Brasil.

Para que a carta seja compreensível ao destinatário, o grupo se comprometeu a traduzir para o francês o seu relato, que será enviado junto de duas fotos instantâneas: uma de Tamie sozinha, outra ao lado de sua anfitriã.

"Cada encontro é uma vida inteira", afirma Nin, que procura se esmerar não só no conteúdo, mas também na caligrafia da carta. "Minha letra normalmente não é tão bonita assim", brinca.

Em um mundo digital, repleto de mensagens instantâneas, a iniciativa ainda se sustenta? "É um movimento devagar, um convite para que você pare um momento, esteja aqui, e depois siga sua vida", explica Ramilla Souza, fotógrafa da companhia.


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