Folha de S. Paulo


Porto Alegre tem único templo ativo de 'igreja da ciência'

O único templo da Igreja Positivista em funcionamento no mundo abre suas portas de madeira pintadas de verde todos os domingos, das 10h às 13h, em Porto Alegre.

Um mestre guardião é responsável pelas chaves do lugar, que é mantido com o apoio de sete apóstolos e cerca de 30 confrades assíduos -os simpatizantes chegam a centenas, segundo ele.

A fama do lugar é internacional: o sociólogo Michel Maffesoli, conhecido por tratados sobre a pós-modernidade, esteve ali três vezes.

O prédio foi inaugurado em 1928 e tombado pelo patrimônio estadual em 2010. A planta arquitetônica segue o projeto do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), propagador do positivismo.

A doutrina inspirou movimentos políticos no mundo todo. No Brasil, a proclamação da República é seu principal fruto. A bandeira nacional sintetiza o positivismo com os dizeres "ordem e progresso". Na fachada do prédio gaúcho lê-se o lema original de Comte: "O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim".

No Rio de Janeiro há um templo mais antigo, fechado. Em Curitiba, positivistas se reúnem numa sala comercial.

O positivismo é uma filosofia, mas gerou uma religião elaborada por Comte: ele descreveu como seriam o templo, os ritos e os símbolos.

"Comte concluiu que toda filosofia e sociologia à disposição do homem não bastavam para mudar a sociedade, e viu que a religião tinha esse poder. É utópica a nossa doutrina", afirma Erlon Jacques de Oliveira, atual guardião.

Oliveira, que é músico e adotou o positivismo há 15 anos, assumiu o posto depois que o antigo guardião, o empresário Afrânio Capelli, se "transformou", em 2013.

"Os positivistas não usam a palavra morte. Usamos a palavra 'transformação'", diz Oliveira. Depois vem a "incorporação", um ritual póstumo realizado após sete anos em que as cinzas do positivista são jogadas no "bosque sagrado", uma incorporação simbólica à humanidade.

"O lugar fica atrás do templo. Avaliamos em uma cerimônia se a vida do confrade foi convergente ou divergente", diz Oliveira. Os convergentes tiveram vida exemplar, enquanto os divergentes podem ter cometido atos de corrupção, por exemplo, e não são incorporados.

Templo positivista

RITUAIS E SÍMBOLOS

Na infância, Oliveira passava diante do templo quando ia ao parque da Redenção, a poucos metros dali, com o pai. O portão de ferro com a inscrição "Os vivos são sempre e cada vez mais necessariamente governados pelos mortos" assustava o garoto.

"Pensava que era coisa de fantasma. Hoje entendo que serve até como filtro, para afastar místicos", afirma.

O positivismo tem como dogma a ciência e o conhecimento. Nada que não possa ser "comprovado", como espíritos, por exemplo, é propagado. "Comte criou uma religião com dogma sempre atualizado", diz o guardião.

Os degraus da escada do templo têm inscrições que simbolizam a evolução da humanidade, objetivo da doutrina. O altar é adornado com bustos de "grandes homens" que representam áreas do conhecimento, como Gutenberg (indústria) e Arquimedes (ciência antiga).

O positivismo tem calendário próprio, com 13 meses. O marco zero é o ano de 1789, ano da Revolução Francesa.

Em um culto do mês de Descartes do ano 226 do calendário positivista, ou seja, em outubro de 2015, Oliveira falou sobre o "poder da internet, tanto para a informação como para a alienação". Os temas são sempre debatidos em grupo e buscam divulgar o conhecimento "clássico".

Para o futuro, os planos são realizar os ritos estabelecidos por Comte. "Já realizamos o fúnebre, agora vamos celebrar casamentos e batizados", revela Oliveira.


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