Folha de S. Paulo


Juízes gaúchos deixam formalidade e recitam sentenças em forma de poesia

Editoria de arte/Folhapress

A formalidade de uma audiência no fórum, com linguajar jurídico e código rígido de vestuário, é substituída pela simplicidade campeira dentro de um Centro de Tradições Gaúchas (CTG) na cidade de Capão do Leão (a 226 km de Porto Alegre).

Na última quarta (16), advogadas e promotora colocaram seus vestidos de "prenda" (apelido dado às mulheres gaúchas), e o juiz estava "pilchado" (com bombacha e lenço vermelho no pescoço).

Mas isso não é tudo. A manifestação das procuradoras, o parecer do Ministério Público e a sentença do juiz foram recitadas em forma de poesia gauchesca –e assim serão anexadas ao processo e publicadas no "Diário de Justiça".

"Saudamos a gauchada / Bem como vossas excelências / Campeando uma solução justa / Para os problemas desta querência", declamaram a procuradora geral do município, Ana Cristina dos Santos Porto, 41, e a advogada do município, Luciana Mainardi Doares Reinhardt, 31, no início da audiência.

Os versos seguiam com o pedido para que a finalidade de um terreno doado à prefeitura em 1990 fosse alterada para regularizar 74 moradias populares construídas no local, em 2009.

O parecer da promotora Rosely de Azevedo Lopes foi favorável: "Todos têm direito à moradia / Que seja digna é fundamental / Está lá no texto constitucional".

Divulgação/Assessoria de Comunicação da Direção do Foro de Pelotas
Audiência crioula é realizada na cidade de Capão do Leão, no RS
Audiência crioula é realizada na cidade de Capão do Leão, no RS

O juiz, da comarca de Pelotas, acatou o pedido. "O município cumpriu a sua parte / Conforme a documentação retrata / É preciso não ser burocrata / E deixar que o interesse coletivo permaneça / A fim de que Capão do Leão cresça", recitou Marcelo Malizia Cabral, 43.

"Eu não sou poeta. Redijo a sentença em termos jurídicos e a cada ano peço a um poeta que transforme em versos. Alguns juízes com talento escrevem de próprio punho", brinca Cabral, que realiza audiências crioulas (típicas do RS) há seis anos.

O autor dos versos é seu assessor, Henrique Alam De Mello De Souza e Silva, 30. Ele conta que sempre leu o escritor João Simões Lopes Neto (1865-1916), que retratou a cultura gaúcha na obra "Lendas do Sul", e o poeta conterrâneo Jayme Caetano Braun (1924-1999).

"A dificuldade foi transformar um fato real em poesia. Minha maior preocupação era fazer entender a sentença respeitando a forma da poesia gaúcha", explica o assessor. Silva diz que a forma e o ritmo dos versos é chamada de "payada" e ficou conhecida com o poema "Martín Fierro", do argentino José Hernandes (1834-1886).

As advogadas da prefeitura escreveram os versos sozinhas, em quatro reuniões fora do expediente, além de duas sessões de ensaio. "Aceitamos o desafio e participamos", diz Ana Cristina.

Divulgação/Assessoria de Comunicação da Direção do Foro de Pelotas
Audiência crioula é realizada na cidade de Capão do Leão, no RS
Audiência crioula é realizada na cidade de Capão do Leão, no RS

TRADIÇÃO

A tradição da audiência crioula surgiu há 12 anos para celebrar a Semana Farroupilha, que lembra a Guerra dos Farrapos (1835-1845), na qual republicanos lutaram contra o império.
Cerca de dez juízes gaúchos realizam a "audiência crioula" em diferentes cidades do Estado. Neste ano, Capão do Leão, Estrela e Camaquã tiveram as suas.

Segundo o juiz Cabral, além de homenagear a tradição, o objetivo é aproximar o Judiciário da comunidade. "Em regra as audiências são públicas. Mesmo com portas abertas, o público raramente comparece", afirma.

O CTG Tropeiros do Sul estava lotado no evento –comunidade e autoridades, todos vestidos a caráter, acompanharam o processo.

Na mesa do juiz e das partes não faltou chimarrão, bebido mesmo durante a audiência. Depois do encerramento, todos confraternizaram com churrasco.

Divulgação/Assessoria de Comunicação da Direção do Foro de Pelotas
Fórum de Pelotas montou
Fórum de Pelotas montou "galpão crioulo" durante comemorações da Semana Farroupilha com eventos e jantares típicos

-

Confira o teor da manifestação das procuradoras do Município de Capão do Leão:

"Neste 16 de Setembro
No CTG deste pago
Convidamos a todos presentes
Para homenagear nosso Estado

Saudamos a gauchada
Bem como vossas excelências
Campeando uma solução justa
Para os problemas desta querência

Um pedido tão singelo
Que merece prosperar
Tendo em vista a necessidade
De casas para morar

No bairro Parque Fragata
Há muita terra para usar
Ansiado está o município
Para construir moradia popular

O Ministério Público do Estado
Opinou sem receio
Que o Capão do Leão tem razão
E atendeu ao nosso anseio

É o momento de pedir
Nesta ação de retificação
Que seja alterado o registro
Para possibilitar habitação

Desta feita Senhor Juiz
Profira justa decisão
E dê a procedência
Para o nosso Capão do Leão."

Confira o teor da manifestação do Ministério Público:

"O município de Capão do Leão
De uma área foi donatário
Correu frouxo no vizindário
Sua específica finalidade:
Construir para a cidade
Praça, igreja e educandário.

A área total, muito grande
Recebeu as obras prometidas
Mas não pode dar guarida
Para igreja e posto policial
Pois não era constitucional
O município pagar esta lida.

Apesar de todas as obras
Concluídas e apresentadas
Há áreas a serem utilizadas
Para outras finalidades
Que interessam à cidade
E às pessoas descapitalizadas.

Consta na petição inicial
Que a terra está ociosa
E que uma enchente odiosa
A muitos munícipes atingiu
Como se viu em verso e prosa.

Diante da situação narrada
Surgiu a necessidade
De reorganizar a cidade
E proteger essa pobre gente
Pois vá que uma nova enchente
Desmanche tudo de verdade.

Todos têm direito à moradia
Que seja digna é fundamental
Está lá no texto constitucional
E a responsabilidade é do prefeito
Que pediu ao juiz de direito
Autorização muito especial.

Contou que naquela oportunidade
Tentou encontrar o doador
Buscou-o em cada corredor
Mas não o encontrou no final
Expediu e publicou edital
Sem sucesso, sem valor!

Aquela ação foi procedente
O juiz autorizou a construção
Determinou a averbação
Na matrícula já descrita
Casas foram construídas
Os atingidos viram a solução.

Mesmo com todas as obras
Na área doada já realizadas
Há ainda pessoas necessitadas
Está ocioso aquele espaço, e
Dando-se hoje um novo passo
As provas serão analisadas.

Esclarece o Município
Aqui o autor da ação
Que a sua pretensão
Encontra amparo legal
E que não há nenhum mal
Da finalidade a alteração.

É de relevante interesse público
A construção de novas moradias
Bem assim o doador queria
Quando estipulou o objetivo
Que o interesse era coletivo
E era isso o que se via.

Documentos foram juntados
A pedido do MP
Que quis pagar para ver
A verdade que fora dita
E veio a prova bendita
A comprovar o dizer.

Veio cópia do outro processo
Veio a lei municipal de 90
Que disse com todas as letras
Que o município podia receber
Aquelas terras para fazer
Praça, posto, escola, igreja.

Para atender ao Parquet
O pedido foi reformulado
Para que fosse acatado
Com as devidas averbações
Para atender às populações
Com a expedição de mandado.

Analisando o petitório
E os anexos documentos
Entendi que neste momento
Não há óbice ao pedido
O desejo do doador foi atendido
Na área doada em comento.

Como ainda tem espaço
Naquela área original
Não atende à função social
Apregoada à propriedade
Entendo, na verdade
Por acatar o pedido tal e qual.

Deve-se incluir na finalidade
Que a área é para loteamento
Mas não se pode excluir do comento
Que é para pessoas de baixa renda
E assim encerro a contenda
Sobre o terreno e seu aproveitamento.

A intenção do doador
Resta, sim, preservada
Pois viver em digna morada
É um direito coletivo
A procedência do pedido
Deve, pois, ser acatada.

Neste mês de setembro
Do ano de dois mil e quinze
Já bem perto do dia vinte
Dia especial pra o gaúcho
Que apenas tem por luxo
Um galpão pra seu requinte.

Desta forma me despeço
Nesta terra fronteiriça
E a este parecer assina
Com a caneta em um só golpe
Rosely de Azevedo Lopes.
Promotora de Justiça."

Versos de autoria de Andréia de Almeida Barros.

Confira o teor da sentença:

"O processo que está sob juízo
Tem o Município por requerente
Impõe-se que se resuma previamente
A situação nos autos explanada
E o faço em forma de pajada
P'ra ser entendido por toda a gente

Segundo se lê dos autos
O Município recebeu grandiosa doação
Mas deveria proceder em contraprestação
A edificações no terreno
Um trabalho nada pequeno
Para a Prefeitura de Capão do Leão

Contou em breves linhas o autor
Que procedeu às exigências da doação
Escolas, posto de saúde e praça fez construção
E disse que nada mais foi olvidado
Que o Posto Policial é competência do Estado
E igreja não pôde, porque afronta a Constituição
Requereu, assim, o postulante
Fosse o registro donativo alterado
Disse que outro juiz havia concordado
Com a construção de casas populares
Mas, p'ra fazer outras moradas similares
Esta ação havia impetrado

Acostados os documentos de praxe
O Ministério Público foi ouvido
Recomendou a emenda do inicial pedido
E o autor logo providenciou
Expôs melhor o causo, documentos juntou
Para ver o seu pleito atendido

A douta Promotora de Justiça
Também neste ato quis deferência
Opinou pela procedência
Assim como o Município
Que, reportando às palavras do princípio
Quis resultado favorável nesta audiência

E, tendo-lhes relatado, decido
Anunciando, de início, com certeza
A demanda é de tamanha singeleza
Tal como é grande a alma do verdadeiro gaúcho
Que dispensa uma vida de luxo
Desde que tenha um lar, uma mesa

Do relatório se pode perceber
Que o processo não é contencioso
Havia um interesse muito zeloso
De serem levantadas grandes obras
Mas, de que valem tantas sobras
Se ao povo faltar morada, bem mais precioso

O Município cumpriu a sua parte
Conforme a documentação retrata
É preciso não ser burocrata
E deixar que o interesse coletivo permaneça
A fim de que Capão do Leão cresça
Ainda mais no Loteamento Parque Fragata

Deste modo, tem razão o Município-autor
Pelo que julgo procedente o feito
Determinando ao Registro o ajeito
Nos moldes do pedido inicial
Assina Marcelo Malizia Cabral
Juiz de Direito."

Versos de autoria de Henrique Alam de Mello de Souza e Silva.


Endereço da página: