Folha de S. Paulo


Sob fogo cruzado: Folha testemunha tiroteio entre criminosos e PMs no Rio

Reprodução/Na Lata
Criança joga futebol na favela da Maré, no Rio de Janeiro; reportagem presenciou tiroteio
Criança joga futebol no complexo da Maré, no Rio de Janeiro; reportagem presenciou troca de tiros

A viela que havíamos deixado ao entrar na casa de Marinalva para uma entrevista sobre polícia e segurança parecia outra na nossa saída. Estávamos numa das 16 comunidades do Complexo da Maré, o maior aglomerado de favelas do Rio de Janeiro.

Aos poucos, percebemos que o que havia mudado no cenário de fios elétricos emaranhados e casas sobrepostas, em eterna construção, não era o tempo nem a luz, mas a agitação das pessoas que circulavam no local.

Ao virarmos a esquina, três motos avançaram sobre um grupo de meninos, claramente perturbados, de olhos arregalados de pavor. Seus condutores gritavam para que fossem na nossa direção. Um deles parecia esconder uma arma dentro da camiseta.

Pá-pá-pá-pá-pá-pow. Tiros de rojão estouraram ao nosso lado. Quem conhece o código sabe que anuncia a chegada da polícia na favela. Era a senha de que, como dizem ali, a chapa estava quente –ou ia esquentar em breve.

Sem saber o que fazer ou para onde ir, vimos surgir, de bicicleta, a dona do restaurante onde a equipe da Folha –que trabalhava em um perfil do Prêmio Empreendedor Social– havia almoçado na véspera. "Por aqui", guiou-nos entre o tumulto da rua.

Começou um corre-corre. Todos pareciam saber o que fazer, menos nós. Corremos junto. O fotógrafo Renato Stockler pedia calma –algo impossível diante do temor de encontrar uma bala perdida, uma tragédia tão cotidiana entre moradores dali.

Na esquina seguinte, estava a ONG que nos servia de base. Lá, o clima era tranquilo e um grupo de mulheres fazia sanduíches de mortadela na copa. Segundos após a nossa chegada, começou um tiroteio: Tá-tá-tá, tá-tá-tá-tá. O estampido alto e seco era muito próximo. "Todo mundo pro chão." E todos se deitaram onde foi possível.

Uma jovem desatou a rir. "Liga não, gente. Tô rindo de nervoso porque eu tô grávida", avisou. Foi um minuto que durou uma eternidade.

Quando o cessar-fogo veio, de imediato as mulheres da copa retomaram os sanduíches e a conversa, enquanto as crianças voltaram a brincar de bola na rua antes deserta. Tudo natural demais.

"Isso é toda semana, filha. Não tem como a gente agir diferente", explicou uma delas.

Pudera. Sem uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) no local, os 160 mil moradores do Complexo da Maré vivem em territórios dominados por milícias e três facções rivais (Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos). Tiroteios, portanto, são corriqueiros.

Fabiano Rocha/Extra/Ag. O Globo
Jacaré que pertencia a traficante é apreendido em operação da polícia no Rio
Jacaré que pertencia a traficante foi apreendido em operação da polícia no Complexo da Maré, no Rio

CAVEIRÃO

Informações após a troca de tiros presenciada pela Folha, no último dia 3, deram conta de que ocorrera com a entrada do Caveirão na favela.

A operação policial deflagrada ainda cedo tinha saldo de um adolescente morto, a apreensão de um filhote de jacaré e 4.000 alunos sem aula.

O cerco policial estava se fechando em torno de Rodrigo da Silva Caetano, o Motoboy, um dos chefes do tráfico local. Mas a polícia só havia "prendido" o bichinho de estimação dele, segundo o delegado titular da 21ª DP, Delmir da Silva Gouvea.

"O jacaré pertencia a Motoboy e servia para aterrorizar desafetos", revelou ao exibir o réptil a jornais cariocas.

"O animal era alimentado por corpos de inimigos que precisam desaparecer", diz um morador, que pede para não ser identificado. "A gente não pode falar disso."

Enquanto o jacaré era levado à delegacia, um adolescente de 16 anos baleado no confronto era transportado para o hospital, onde morreu. A polícia diz ter encontrado com ele uma pistola.

"Sempre justificam a morte dizendo que a vítima tinha passagem pela polícia, mas se esquecem de que, no Brasil, não existe pena de morte", afirma uma líder comunitária.

Na manhã da terça (8), forças de segurança pública fizeram nova operação na região, resultando na morte do adolescente Cristian Andrade, 13, além de um policial ferido e numa moradora baleada ao buscar a filha na escola.

No tiroteio, uma creche, um salão de cabeleireiro e residências foram atingidos. Na página Maré Vive, moradores postaram marcas de tiro em quartos e relatos como o de Renata Souza: "Mais de 4 horas com intenso tiroteio! Minha família tá deitada no chão da cozinha e banheiro, lugares supostamente seguros!".

Em nota, a ONG Redes da Maré, que atua na comunidade há 18 anos, e o Observatório das Favelas criticaram esse tipo de operação policial "que coloca em risco e paralisa o cotidiano dos moradores". "Mais uma vez prevalece a ideia da guerra às drogas a qualquer custo e se admite a favela como território inimigo, onde as 'baixas' civis são aceitáveis", afirma o texto.

RECEPÇÃO

Dois meses após a saída do Exército, que ocupou a Maré por um ano e três meses a um custo estimado de R$ 600 milhões, os soldados do tráfico, alguns imberbes, voltaram a exibir seus fuzis e revólveres em plena luz do dia.

Na quarta (2), a equipe da Folha –formada por nós duas e os fotógrafos Stockler e Bruno Miranda– foi recepcionada na chegada à Maré pela mira do fuzil empunhado por um garoto que aparentava menos de 18 anos. Ele inspecionava carros que entravam por uma ruela que margeia a avenida Brasil.

Do outro lado da rua, uma enorme caixa de som amplificava o hino de uma das tantas igrejas evangélicas da região. Ao lado, um jovem cantava "Jesus, Jesus, Jesus", pistola numa mão, rádio na outra. A 800 metros dali, debaixo de um viaduto fora da favela, fica um Caveirão.

OUTRO LADO

O secretário de Segurança Pública do Estado do Rio, José Mariano Beltrame, declarou, por meio de nota, que o episódio presenciado pela equipe da Folha ocorre "infelizmente, em vários lugares há mais de 40 anos sem que nenhuma providência tivesse sido tomada". Ele diz que sua gestão não quer guerra, mas sim atuar "contra a guerra com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)".

Ainda assim, o secretário admite que, na Maré, no momento da operação, "você vive uma situação de guerra, que não é boa pra ninguém, nem para o policial, que também é ferido, também morre, nem para os traficantes, que deveriam ser presos. Imagina então inocentes mortos... [Algo que] Nós nunca entendemos como normalidade".

De acordo com Beltrame, a ocupação definitiva da Maré deve ocorrer em março de 2016. Ele diz não ser possível afirmar, no entanto, que "nunca mais teremos tiro ou arma numa área pacificada porque um dos aspectos das facções criminosas é a idolatria às armas de fogo".

Em nota, a PM do Rio diz que as operações realizadas na Maré na terça (8) e quarta (9) resultaram na apreensão de um fuzil, seis pistolas, 150 kg de maconha, 1.190 trouxinhas de maconha, 15.784 sacolés de cocaína, 1.773 pinos de cocaína, 1 kg de pasta base, 14 kg de cocaína, 1 kg de crack e 234 pedras de crack.


Endereço da página: