Folha de S. Paulo


'Você matou meu filho': Anistia Internacional aponta execuções pela PM

A Anistia Internacional divulga nesta segunda-feira (3) um estudo inédito sobre autos de resistência de policiais militares do Rio, no ano de 2014, na favela de Acari, zona norte da cidade.

A modalidade criminal é amparada por lei, quando o agente mata uma pessoa alegando legítima defesa. No entanto, o órgão concluiu que, dos 10 casos registrados na favela no período, em nove há indícios de assassinatos extrajudiciais.

Intitulado "Você matou meu filho" –que seria a frase da mãe de uma das vítimas dita a um policial– o relatório aponta que seis supostos traficantes de drogas foram mortos em emboscadas ou já rendidos. Outros três casos seriam de moradores que foram mortos por policiais e tiveram drogas e munições implantadas.

"Nós percebemos claramente que a intenção dos agentes não era prender, e sim matar. O policial usa uma lógica de guerra, respaldado muitas vezes pela sociedade. Mas estamos em um estado democrático de direito, no qual nem a pena de morte é vigente", afirmou Átila Roque, diretor da Anistia Internacional no Brasil.

O Secretário Estadual de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, considera o estudo injusto, "num momento momento em que vemos os níveis de criminalidade caírem no Rio". Segundo ele, a capa do estudo já cria um estigma antecipado do policial.

"Todos sabem que no Rio de Janeiro a diminuição da letalidade violenta é o principal fator para que um policial seja premiado no Sistema Integrado de Metas. E no caso específico do homicídio decorrente de intervenção policial, os resultados saltam aos olhos, principalmente nas áreas onde foram instaladas Unidades de Polícia Pacificadora."

De acordo com Beltrame, houve 20 mortes decorrentes de intervenção policial em áreas de UPP em 2014, o que equivaleria a uma redução de 85% se comparado ao registrado em 2008 (136 vítimas).

"Sabemos que no Rio ainda há áreas com guerra, como mostra esse estudo de casos. Mas é inegável a melhora nos índices de criminalidade de 2007 para cá. Infelizmente, todo esse avanço não é reconhecido nesse estudo".

CHACINA DE ACARI

O estudo foi realizado durante nove meses e contou com 50 depoimentos de testemunhas. Acari está na região da cidade onde em 2014 foi registrado o maior número de mortes em decorrência de ação policial: 68 casos de um total de 244.

Como em 2015 completa-se 25 anos da Chacina de Acari, onde 11 pessoas foram mortas por um grupo de homens que se identificou como policiais, a favela foi escolhida para o estudo. Da chacina, em 2010, as investigações foram encerradas sem a denúncia dos responsáveis.

A falta de investigação é outro aspecto apontado pela Anistia. "Levantamos o dado inédito de que das 220 mortes registradas como autos de resistência em 2011, no Rio, 183 continuam como inquéritos abertos, em investigação. Ou seja, o uso extremo da força policial é uma situação que não deveria pairar dúvidas, mas o próprio Estado não se empenha em elucidar", analisou o diretor.

Das mortes analisadas pela Anistia, três foram cometidas por agentes do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), e duas pelo Batalhão de Choque, tropas de elite da Polícia Militar.

Seis mortes ocorreram com a utilização do chamado "tróia", tática descrita no estudo como "emboscada realizada por um policial que fica escondido para atirar em uma pessoa específica sem receber nenhuma voz de prisão ou sem oferecer perigo para a vida do agente".

A Polícia Militar, indagada pela Folha se a tática era utilizada, não respondeu. No entanto, um oficial da corporação, que não quis se identificar, afirmou à reportagem que a tática é corriqueira. "É um medida profilática, humana. A gente atinge quem deve ser atingido e poupa vidas inocentes".

Em nota, a corporação disse que desde 2009 os policiais estão sendo premiados ao reduzir o número de autos de resistência e que todos os registros são averiguados, podendo gerar inquéritos.

O promotor responsável por acompanhar os inquéritos no âmbito militar, Paulo Roberto Mello, afirmou à Folha que em muitos casos há fraudes. "Quando um policial é indiciado, sustenta que houve confronto, implanta provas. Estou com um caso de Rio das Ostras em que dois adolescentes morreram com tiros na cabeça. Os policiais alegam que houve troca de tiros, mas um dos tiros foi com cano encostado. É um total deboche com a Justiça".

Um dos casos que há indícios de assassinato por policiais ocorreu em fevereiro de 2014, quando um traficante, identificado como Gustavo, 31, foi morto por agentes do Bope. O relatório descreve: "Uma testemunha diz que Gustavo caiu com os braços pra cima, e gritou: 'perdi, perdi'. Foi quando um policial se aproximou, pegou sua bolsa, viu o que tinha dentro e disse: 'perdeu nada, eu quero a sua alma!'. Nesse momento, o agente o executou com mais um tiro".

A Anistia pede mudanças nas investigações dos chamados autos de resistência. Atualmente, somente quando há indícios de homicídio praticado por policiais o caso é repassado para a Divisão de Homicídios. A maioria fica a cargo das delegacias da área, que aglomeram o trabalho de investigação com outros tipos de ocorrências.

Em nota, a Polícia Civil reconheceu que existe demora nas investigações, mas por conta da dificuldade de se conseguir depoimentos de testemunhas que ficam receosas com a represália de grupos criminosos. Ainda na nota, a Polícia Civil disse que irá encaminhar o estudo à Divisão de Homicídios.

O relatório possui traduções em inglês e espanhol e será divulgado simultaneamente em 160 países de atuação do órgão não governamental.


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