Folha de S. Paulo


análise

Troca humana é a principal marca nas relações entre Brasil e Japão

Quando eu morava em Tóquio, um amigo japonês me disse que o Brasil era especial para ele porque, quando visitou o país, algumas pessoas o tomavam por brasileiro e se dirigiam a ele em português. Em nenhum outro lugar algo semelhante lhe aconteceu.

O fato de que dois povos, distantes na geografia e na cultura, possam estar tão ligados a ponto de serem confundidos não é fruto do acaso. É uma realidade humana construída. Surgiu de necessidades recíprocas.

No final do século 19, o Japão tinha excedente populacional e precisava evitar tensões sociais; o Brasil carecia de mão de obra para a agricultura. Os dois países, no entanto, não mantinham relações. A conveniência de uma política migratória comum estimulou a aproximação.

As relações oficiais se estabeleceram há 120 anos, com a assinatura de um Tratado de Amizade, Comércio e Navegação (1895). Assim a história do Brasil com o Japão começou.

18.jan.2009 - Yoshikazu Tsuno/AFP
Em Tóquio, grupo de decasséguis faz manifestação contra demissões em empresas japonesas
Em Tóquio, grupo de decasséguis faz manifestação contra demissões em empresas japonesas

Sob a vigência do tratado, chegaram aqui cerca de 200 mil imigrantes japoneses (1908-1973). Apesar de dificuldades culturais e políticas, como o rompimento de relações na Segunda Guerra, o Brasil assimilou esses imigrantes e conta atualmente com uma comunidade de cerca de 1,5 milhão de nipodescendentes, a maior fora do Japão.

Essa dimensão humana do relacionamento bilateral se adensou quando, nos anos 1990, as necessidades se inverteram, e brasileiros (nipodescendentes e familiares) foram suprir a carência de mão de obra de empresas japonesas. Em 2008, havia cerca de 330 mil brasileiros no Japão admitidos com vistos de trabalho de longa duração.

Hoje, são cerca de 170 mil, terceira maior comunidade brasileira no exterior (depois dos EUA e do Paraguai) e quarto maior grupo estrangeiro no Japão (atrás de chineses, coreanos e filipinos).

Nos últimos 120 anos, a dimensão humana foi um diferenciador que favoreceu entendimentos em múltiplos níveis da relação Brasil-Japão. Por essa razão, não devemos negligenciá-la agora.

A maior parte dos brasileiros hoje no Japão serve em fábricas como mão de obra de baixa qualificação. Muitos estão no país há 25 anos. Criaram raízes e não querem retornar ao Brasil. Mas continuam a ser tratados como trabalhadores temporários.

Esses imigrantes brasileiros precisam de políticas específicas que lhes deem oportunidades de se integrar e de prosperar no Japão, da mesma maneira que seus antepassados conseguiram fazer no Brasil.

Cerca de um terço da comunidade brasileira no Japão é composto por crianças e jovens. Boa educação é fundamental para que se integrem e ascendam socialmente.

Como estrangeiros, porém, são dispensados de frequentar escolas formais. Têm dificuldades linguísticas e culturais e encontram-se em situação de vulnerabilidade social. O percentual de evasão escolar é alto. Pouco se faz a respeito, e os efeitos já se fazem notar. Entre os delinquentes juvenis no Japão, os brasileiros estão em primeiro lugar.

Os nipodescendentes sempre deram impulso especial às relações bilaterais. Quanto mais êxito tiverem os brasileiros residentes no Japão, mais vigor ganhará o vínculo entre os dois países.

A complementaridade que nos aproximou em 1895 continua a existir, só que em outros termos. Diante do potencial de ganhos recíprocos em energia, desenvolvimento tecnológico, agricultura, investimentos e infraestrutura, a presidente Dilma e o primeiro-ministro Shinzo Abe lançaram, em 2014, uma parceria estratégica global, que alça as relações a um patamar superior. É como se os termos do Tratado de Amizade recebessem um upgrade.

Mas, para que a elevação das relações bilaterais a esse novo patamar seja possível, os países precisam valorizar o capital humano que dividem e promover políticas para a integração da comunidade brasileira na sociedade japonesa. É como tem de ser.

Escritor e diplomata, ALEXANDRE VIDAL PORTO trabalhou na embaixada brasileira em Tóquio


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