Folha de S. Paulo


Escolas mostram contradições do Estado laico no país, diz autora de ação

No preâmbulo da Constituição, há a mensagem de que o documento foi aprovado "sob a proteção de Deus". Na Suprema Corte, um crucifixo está afixado no plenário. A Presidência e o Congresso também exibem o símbolo.

"Vivemos essa contradição permanente", diz a subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, 56, sobre princípio laico do Estado brasileiro e a manifestação religiosa em espaços públicos.

Autora de ação que questiona no STF (Supremo Tribunal Federal) o formato atual do ensino religioso na rede pública, ela defende que as aulas não devem ter caráter confessional, e sim uma narrativa histórica das religiões.

Na segunda (15), a Corte dá início ao debate em uma audiência pública. O julgamento ainda não foi marcado.

Por lei, o ensino religioso deve ser ofertado de forma facultativa na rede pública. Segundo dados de 2013, no entanto, as aulas são obrigatórias em 30% das escolas.

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Pedro Ladeira/Folhapress
Deborah Duprat, 56, subprocuradora-geral da República
Deborah Duprat, 56, subprocuradora-geral da República

Raio X - Deborah Duprat

Nascimento
19 de abril de 1959, no Rio de Janeiro

Formação
Direito pela UnB (Universidade de Brasília)

Ocupação
Subprocuradora-Geral da República

Carreira
Nomeada em 1987 para o cargo de procuradora da República. Em 2009, se tornou vice-procuradora-geral da República, segundo cargo mais importante no Ministério Público Federal. Foi afastada em 2013, por divergir do chefe na época, Roberto Gurgel

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A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

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Folha - O modelo ideal de ensino religioso é pelo viés histórico?
Deborah Duprat - Não é [questão de ser] o ideal. Há um dispositivo constitucional que não posso ignorar: de um lado a Constituição afirma a laicidade do Estado e de outro a oferta de ensino religioso nas escolas públicas. O que eu posso é apenas compatibilizar esses dois dispositivos, de início contraditórios entre si. A única leitura que me parece ser possível é a que compatibiliza o ensino religioso com a perspectiva de ensino da história das religiões, e também daqueles que não professam religião alguma. É uma disciplina que tem nenhum aspecto confessional, ministrada por professores recrutados mediante concurso público, sujeitos a plano de carreira, e não recrutados de um ambiente religioso.

E por que isso não vigora?
Acho que por uma ausência de reflexão, de indução do Estado, de uma cobrança. Há aí uma dose de desconhecimento, misturada com práticas que vão se firmando e que são difíceis de serem abandonadas. O espaço público não é espaço para você exaltar um determinado modo de vida, inclusive o religioso. Isso é um processo, e obviamente não acontecerá do dia para a noite, mas é preciso que se inicie.

A senhora pessoalmente defenderia o fim do ensino religioso?
Eu defenderia como militante. Como operadora do direito, não posso.

O Ministério da Educação deve definir o conteúdo dessas aulas?
Com certeza, seria muito importante. Agora, é preciso fiscalização. Enquanto isso não ocorre, há uma legião de crianças em processo de formação sendo, no início de suas vidas, obrigadas a conviver com ideias que as vezes não são aceitas no ambiente doméstico, o que torna a cabeça dessa criança um palco de conflitos numa idade muito precária.

O ensino religioso é realmente facultativo?
Facultativo para crianças e adolescentes, que são pessoas em processo de formação. Num ambiente como uma escola, isso está cercado de constrangimentos: é muito mais fácil aderir às maiorias do que se apresentar como uma minoria. É uma facultatividade que opera muito mais no plano semântico do que no plano real.

A contradição entre o Estado laico e a religião não fica expressa nos prédios públicos?
Totalmente, mas já se entendeu que [isso] é uma expressão cultural, como se fosse fácil para um judeu ver um símbolo desse tipo e tê-lo apenas como uma expressão cultural. Nós vivemos essa contradição permanente. A gente tem ainda práticas que nos distanciam muito de um Estado laico.

Existe uma visão conservadora da sociedade brasileira sobre o que deve ser ensinado na sala de aula?
Nós tivemos, mundo afora, uma transformação em termos normativos absurda: legislações prevendo casamento entre pessoas do mesmo sexo, inserção de pessoas com deficiência na sala de aula, a questão LGBT de uma maneira geral, os direitos territoriais. Isso tudo é mudança de paradigma e acho que isso vem acompanhado depois de uma reação. Essa reação está se verificando agora. Talvez a gente viva de ciclos e esteja de fato vivendo uma reação conservadora que vai demandar resistência e resposta por parte do restante da sociedade.

E da justiça também?
Sim, na medida em que é possível agir. Eu acho que o Supremo Tribunal Federal já teve um período de maior protagonismo nessas lutas sociais. Não está vivendo seu melhor período, infelizmente. Basta lembrar que há 4, 5 anos a gente teve grandes decisões num período muito próximo: o fim da lei de imprensa, a questão da marcha da maconha, anencefalia, união homoafetiva.

E como a senhora vê essa relação hoje entre religião e Estado?
Nós voltamos a um cenário em que aparentemente o Estado se torna refém da religião. É um ambiente em que a religião parece que está penetrando por todos os espaços. Acho também que esse movimento conservador é datado. Eu tenho esperança de que a reação virá.


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