Folha de S. Paulo


Um ano após aventura para chegar ao Brasil, haitiano faz pizzas em SC

Foi uma aventura chegar até o Brasil. Em alguns momentos, pensei que nunca encontraria minha irmã em Santa Catarina [onde ela já mora há três anos].

Fui da República Dominicana [país vizinho ao Haiti] até o Equador de avião. De Quito, fui de ônibus até Lima, no Peru. De lá, outro ônibus para Puerto Maldonado [na Amazônia peruana], de onde partimos de van para o Brasil.

Toda a travessia é complicada, e no Peru nos roubam muito, principalmente os policiais. Não há como viajar sem recorrer aos coiotes [pessoas que aliciam os imigrantes e buscam facilitar a travessia em troca de dinheiro].

No Acre, fiquei alguns dias no abrigo e, assim que consegui o número de protocolo, peguei o ônibus para São Paulo. Foi outra aventura, três dias na estrada.

Avener Prado/Folhapress
Jeremi Dozina horas após entrar no Brasil, em 2014, em Epitaciolândia (AC)
Jeremi Dozina horas após entrar no Brasil, em 2014, em Epitaciolândia (AC)

Quando cheguei em São Paulo, em 21 de maio de 2014, fiquei um dia no alojamento da prefeitura, ao lado da igreja que recebe os imigrantes [Nossa Senhora da Paz, no bairro do Glicério, no centro].

Logo fui para a casa de um amigo haitiano que vivia na cidade. Não posso dizer que conheci São Paulo: como estava muito frio, praticamente não saí de casa. Um mês depois, parti finalmente para Florianópolis, onde minha irmã mais velha vive.

Sabia que havia muitos haitianos em Santa Catarina, mas não imaginava que eram tantos. Conheci muitos, praticamente todos trabalham. Aqui só não trabalha quem não quer.

Indicado por uns colegas haitianos, comecei a trabalhar em uma pizzaria pouco tempo depois de chegar a Florianópolis. É o mesmo lugar onde estou ainda hoje.

Trabalho na cozinha, aos poucos fui aprendendo a fazer pizza, coisa que nunca havia feito na vida.

Geralmente trabalho de segunda a sábado, folgando aos domingos. Estou registrado no trabalho, recebo um salário mínimo, mas não estou completamente regularizado. Ainda hoje só tenho o número do protocolo de entrada no país, que todos haitianos recebem quando chegam.

No Haiti não há tantas pizzarias como aqui. Lá a maioria da população não consegue comprar uma pizza, que é uma comida considerada de rico. Mas aqui também não é todo mundo que pode.

Estou aprendendo a falar português com meus colegas de trabalho. Já melhorei bastante, é uma língua que se parece muito com o espanhol, que eu já falava.

O pessoal da pizzaria gosta muito de mim. São dos poucos amigos que tenho no Brasil. Eles e minha irmã.

Um dia, de folga, fui com os colegas de trabalho conhecer umas praias nos arredores de Florianópolis, todas belíssimas. São bastante diferentes das praias que eu havia visto.

Fora esse passeio e uma ou outra saída, tenho uma vida muito pacata em Florianópolis. Sou assim desde o Haiti e depois na República Dominicana, onde também morei. Não sou muito de sair, de festa, de balada, gosto de ficar na minha, geralmente em casa. É meu programa favorito nas horas de folga.

Todos me perguntam se, nesse primeiro ano de Brasil, eu já encontrei uma namorada brasileira. Mas como? Sou casado, minha mulher e minha filhinha estão na República Dominicana. Gostaria de trazê-las para o Brasil, mas minha mulher não quer, não sei o motivo. Ela resiste à mudança.

Até o momento não tive nenhum problema no Brasil, não sofri qualquer tipo de preconceito ou discriminação. Sei que muitos haitianos passam por isso, mas comigo nada aconteceu, por sorte.

O Brasil, como o Haiti, é um país muito desigual, mas aqui pelo menos há muitas oportunidades, muito diferente da vida por lá.

Sonho em voltar para o Haiti, afinal é o meu país, a minha casa e ainda tenho familiares por lá. Mas não sei quando conseguirei voltar.

Gosto do Brasil, gosto de Santa Catarina. Aqui encontrei a paz e estou feliz.


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