Folha de S. Paulo


Chef de cozinha dá oficina e emprego a adolescentes infratores

Uma peça de seis quilos de coxão mole descansa sobre o balcão de aço. Precisa virar tirinhas de estrogonofe, prato que oito garotos de 13 a 17 anos vão ajudar a chef Janaina Rueda a preparar na Fundação Casa de Itaquaquecetuba (SP), numa tarde de quarta-feira.

Vinícius, 15, nome fictício –assim como os outros citados nesta reportagem–, se apruma diante da peça e começa a manejar a faca. "É desse jeito, né, senhora?", ele pergunta a Janaina. "É, está certinho", diz ela, na terceira aula, acompanhada pela Folha.

Eles estão numa das salas onde todos os dias são oferecidas oficinas aos 34 internos, todos meninos, por ONGs ou pessoas que queiram ajudá-los a ampliar os horizontes.

Janaina Rueda ficou sabendo disso no ano passado por um amigo que é agente socioeducativo no local.

Dona do Bar da Dona Onça, no centro de São Paulo, várias vezes premiado pela crítica especializada, a chef se empolgou com a ideia, foi atrás da unidade e começou em janeiro -a ideia é ir até dezembro, uma vez por mês.

Janaina não ganha nada para estar lá -pelo contrário, leva os próprios utensílios e ingredientes (carne, batata, cogumelo, cebola, arroz, temperos). "Doação é doação, né?"

NOVOS RUMOS

Enquanto Vinícius é seguido por outros dois rapazes no corte da carne ("Você ensina, porque você sabe cortar, tá?", orienta a chef), David, 17, comanda o corte da cebola, muitas, suficientes para fazer quase todo mundo chorar.

Na aula anterior, Vinícius e David, amigos de infância em Itaquaquecetuba, pediram para a chef uma vaga em seu bar e restaurante.

Estão ansiosos para sair dali, provavelmente no fim do mês, após nove meses de internação. Foram pegos juntos em julho do ano passado furtando um carro.

Em janeiro, a polícia já havia pego os dois sendo "avião" de cocaína –entrega da droga, trabalho que os traficantes costumam deixar a cargo de menores de idade.

"O intuito das minhas aulas é que eles tomem gosto pela cozinha. Não é só para ser profissional", diz Janaina.

Agora, os dois têm a chance de ganhar R$ 1.500 por mês como menores-aprendizes (a mãe de David, Kátia, 41, ganha R$ 845 como merendeira de escola estadual). Eles vão começar lavando louça, que é como praticamente todos os cozinheiros começam a carreira. "Vinícius é mais generoso e técnico, David é imperativo. Acho que os dois se complementam".

Pouco antes da aula, Janaina deu aos meninos a notícia do emprego na sala do diretor: "Não me importa o que fizeram, importa que agora querem fazer o bem", diz à Kátia e Edna, 55, madrasta de Vinícius.

O garoto, caçula de três, fugiu de casa aos 8 anos para morar na boca de fumo com um amigo. Estava lá quando soube da morte da mãe, há três anos. Emocionado, dá um abraço apertado na madrasta quando ela vai embora, longe dos olhares alheios.

SOCIALIZAÇÃO

João, 15, varre os restos de cebola do chão, enquanto Cristiano, 15, preso duas vezes vendendo cocaína, dá um trato na louça com outros dois. Ninguém fica parado. A essa altura, ninguém lembra que os meninos empunham facas. "Quando você se predispõe a acreditar em pessoas, você tem de acreditar e ponto", diz Janaina.

O passado dos meninos também ajuda. Estão ali, na maioria, por crimes como furto e tráfico. Gilberto, 13, chegou há seis meses por furto de carro. "A gente estava indo pro baile", conta. Já acumulou 20 boletins de ocorrência. "É o maior 'criminoso' que temos aqui hoje", diz, ironicamente, um agente, ressaltando que Gilberto nunca foi repreendido por mau comportamento.

Se a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, em discussão no Congresso, for aprovada, garotos pouco mais velhos terão que se misturar a adultos numa prisão convencional, em outro sistema de ressocialização.

Muitas vezes é socialização, não ressocialização, lembra Fernando Lopes, diretor da unidade. "Muitos chegam aqui sem nenhum trato social, não sabem nem falar direito".

"Senhora, precisa pôr mais água no arroz", alerta Vinícius, já quase no fim da aula. Enquanto alguns descansam, ele não tira a barriga do fogão.

É quase noite. A turma fez comida o bastante para todos os rapazes, os agentes socioeducativos e a reportagem. Muitos repetem o prato e alongam o papo com Janaina, que vai se despedindo.

Com os olhos vidrados nela, todos recebem um beijo no rosto -João não se aguenta e pede um abraço. "Rola uma transmissão de amor com eles, eu sinto isso", diz ela. Fora da sala, Janaina é chamada por outro interno. Ele também quer um emprego.

DIA A DIA

Nos 151 centros socioeducativos do Estado de São Paulo, os internos de 12 a 17 anos (que ficam detidos por até três anos) têm aulas do currículo escolar pela manhã.

A tarde é preenchida com oficinas –artísticas, culturais, esportivas e profissionais. Eles participam de todas as atividades, mas a direção observa afinidades.

Os oito garotos que participam das aulas de culinária da chef Janaina Rueda, por exemplo, são alguns dos que se saíram bem na oficina de chapeiro (para fazer hambúrguer).

A cada três meses, uma avaliação de comportamento é feita pelos agentes e enviada para o juiz. A maioria que está ali ainda tem pouco envolvimento com a criminalidade, diz Fernando Lopes, diretor da unidade Terra Nova, de Itaquaquecetuba (SP).

As entidades que dão as oficinas (feitas em parceria com cada Casa, já que elas têm gestão descentralizada) são as mesmas que podem fazer doações de livros, por exemplo.

Entre os internos, muitos contam ter aprendido de fato a ler e a escrever ali -é o caso de David, de 17 anos, na 6ª série. "Agora ele está lendo direitinho", diz sua mãe, Kátia da Cruz, 41.

Outros tomaram o gosto pela leitura lá: Cristiano, 15, aparelhos fixos nos dentes, conta ter lido 32 títulos nas duas vezes em que esteve internado por venda de cocaína.

"Nesses três meses e 17 dias em que estou aqui", conta, com exatidão, "eu li seis da Zibia Gasparetto. É a minha autora preferida", afirma, sobre a escritora médium que tem mais de 40 livros publicados no mercado.

O acervo da unidade, modesto, como admite o diretor, tem cerca de 200 títulos. Eles ficam espalhados pelos dormitórios, para os garotos lerem ao fim do dia.

No de David, entre os 22 livros para nove meninos que dormem ali, seis eram a Bíblia e um era uma biografia de Edir Macedo, líder da Igreja Universal.

Fernando faz um apelo para doações de romances juvenis e outros títulos: é só entrar em contato pelo e-mail pedagcasaterranova@fundacaocasa.sp.gov.br.

Cristiano fica animado quando ouve que a reportagem vai passar o apelo adiante. "Já passei dois Natais aqui porque estava vendendo droga. Claro que dá dinheiro, mas não compensa, né? Eu quero fazer faculdade."


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