Folha de S. Paulo


Nosso maior manancial é a incompetência, diz consultor

"Acabou o mundo da fantasia", decreta o economista Gesner Oliveira, consultor de recursos hídricos e ex-presidente da Sabesp (2007-2010).

Regiões como a Grande São Paulo, diz ele, vão precisar conviver com um cenário duradouro de escassez.

A reversão, na visão do especialista, não será feita apenas com obras. Diminuição das perdas na distribuição de água e redução de consumo são ações essenciais para que os paulistas tenham alguma segurança hídrica.

Defensor da participação do setor privado no segmento do saneamento básico, ele não vê incongruência em uma empresa de água distribuir lucros para acionistas, como é o caso da Sabesp.

"Há um debate internacional sobre a água como um direito universal, o que não seria compatível com a atividade privada. A população de vários países não tem serviços mínimos porque prevalece uma visão extremamente paternalista ou estadista do assunto", diz ele, para quem há um aspecto positivo da crise: ela é pedagógica para gestores e consumidores.

Leia a seguir trechos da entrevista de Oliveira, que também é professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica Aplicados à Administração da FGV

Folha - Como garantir que as pessoas tenham acesso à água se ela não for vista como direito?

Gesner Oliveira - É um serviço básico. Mas, sem investimentos privados, não há serviços necessários. As empresas brasileiras de saneamento que funcionam –Sabesp, Sanepar (PR) e Copasa (MG)– têm participação privada.

Esse seria um modelo a ser estendido para o resto do país?

Sim. O investimento de ampliação do sistema do Alto Tietê foi feito em dois anos. A Sabesp demoraria quatro anos para fazer essa obra.

Hoje não há rodízio, mas existe racionamento?

De jeito nenhum. Estamos vivendo uma situação de problemas de falta de água em função de uma opção, que me parece correta, de diminuição da pressão da água.

Muita gente reclama da falta de informação. Não dá para avisar quando faltará água por redução de pressão?

O esforço de comunicação é sempre útil e qualquer adicional é bem-vindo.

Faltou transparência durante a gestão da crise?

O padrão de governança da Sabesp é o melhor do Brasil. Mas a crise fez emitir um alerta geral, não só para o governo e para as empresas, mas para todos: não estamos mais no mundo da fantasia.

A empresa que cuida do dia a dia do saneamento não poderia ter se preparado melhor?

Com risco de ser chapa branca, digo que a Sabesp foi a empresa que fez o maior programa de água de reúso do hemisfério sul. Tem o maior programa de redução de perdas do Brasil e provavelmente da América Latina.

A Sabesp não tem uma previsão detalhada sobre a meteorologia dos seus sistemas?

Existe um grupo da USP que faz uma previsão voltada para o sistema Cantareira. O que aconteceu neste ano está totalmente fora de qualquer intervalo de previsão. O que está ocorrendo aqui é recorrente em Minas [Gerais], no Nordeste, na Califórnia e na África e exige, de uma maneira geral, outra estratégia.

Na Califórnia, o governo escancarou o problema. Aqui, a gravidade da crise não foi exposta por causa das eleições?

É difícil se dissociar da questão eleitoral, mas, em um longo prazo, temos que olhar para erros do passado. Desde os anos 1960 fomos negligentes na estratégia de ocupação de São Paulo. Nós deveríamos ter protegido as margens da Guarapiranga e do rio Tietê. Por que foram canalizados tantos córregos? Se você tivesse o rio Pinheiros e o rio Tietê navegáveis, com píeres, você teria muito lucro.

Como é possível aproveitar melhor o ciclo da água?

Primeiro, produzindo eficientemente. O Brasil perde, em média, 37% da água que produz, seja em perdas físicas, seja em perdas comerciais. Em Macapá, por exemplo, este índice é de 72%.

Depois, tratando a água. É muito importante a captação de água de chuvas. É preciso também fazer medição de consumo individualizada.

O governador falou que há "gastões" de água e sabe-se que condomínios têm dificuldades em reduzir o uso porque têm hidrômetros coletivos. Por que nunca houve uma política de mudança disso?

Porque ninguém se preocupa com isso. Há uma incompetência que é geral, da sociedade. A gente se acostumou a um mito de abundância [de água]. Então, precisa haver um choque cultural. As pessoas precisam se dar conta de que um banho de cinco minutos é algo razoável.

O componente ambiental não está demorando muito para entrar no contexto político?

Ele é crucial. As empresas não podem atuar como vendedoras de água, mas como companhias de meio ambiente. Mobilizar a população para proteger córregos, defender o reflorestamento, não jogar lixo nos rios.

E se não chover acima da média neste verão?

Considerado o absurdo desperdício de água, existe um bom espaço para a redução de consumo. A redução de consumo já foi equivalente a um novo sistema. Nós podemos ter mais um sistema sem sacrifício. Os hábitos brasileiros em relação à água ainda são carnavalescos.

É mais barato investir em obras ou redução de perdas?

Devemos reduzir perdas antes de construir sistemas. Em uma cesta de soluções, daria um peso maior na redução de consumo. Daria grande ênfase também na redução de perdas. Daria muita ênfase ainda na reciclagem de água.

Em São Paulo, a redução de perdas envolve diminuição das perdas físicas (redução de vazamentos com equipes especializadas na detecção nas tubulações menores). E reduzir perdas comerciais.

Reduzir perdas de 37% para 25% até 2025 no país renderia R$ 30 bilhões (três anos do que é investido em saneamento).

Gosto de usar o seguinte bordão: nosso maior manancial é a incompetência.


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