Folha de S. Paulo


Há três anos, idosos cegos aguardam justiça no AM

Seu Antônio, 73, mora perto do rio Madeira, mas não come mais peixe. Dona Senhorinha, 64, precisa se escorar em varais para chegar ao quintal. O carpinteiro Seu Raimundo, 95, aposentou-se há três anos e foi obrigado viver trancado em casa.

A história de 18 idosos da pequena Nova Olinda do Norte (a 135 km de Manaus) mudou radicalmente em abril de 2011, quando um mutirão de cirurgias de catarata do governo do Amazonas terminou em cegueira permanente.

Quase quatro anos depois, os idosos tentam sobreviver com a ajuda de parentes e amigos em uma cidade de 34 mil habitantes, acessível apenas pelo rio, com pouca infraestrutura e nenhum respaldo do poder público.

À espera de justiça, ao menos 5 dos 18 idosos já morreram desde então, um deles após complicações em decorrência da cegueira: após um tombo, precisou amputar uma perna e definhou.

"A nossa vida acabou. Não conseguimos fazer mais nada direito. O que eu posso fazer agora? Só morrer", diz o carpinteiro Raimundo Barros Neto, 95.
mutirão

Em março de 2011, o mutirão do governo do Amazonas desembarcou em Nova Olinda do Norte para realizar 36 cirurgias de catarata. Horas depois, metade dos operados ficou com os olhos vermelhos, com dores lancinantes, calor, secreções e, finalmente, visão turva e cegueira.

Dias depois, os idosos foram levados a um hospital de Manaus, mas o quadro era irreversível.

"Eu enxergava e trabalhava como mecânico. Fiquei cego de um olho, e agora estou com problema na outra vista também. Entrei em depressão, isso foi o fim da minha vida", conta Edmilson Freitas, 71, ao lado da oficina em seu quintal, abandonada.

Depois de quase duas semanas internados e recebendo colírios, contam os idosos, foram levados de volta a Nova Olinda, mas nunca mais receberam qualquer explicação ou satisfação sobre o caso. "Diziam que a gente iria voltar a enxergar em um mês", afirma Freitas, que até hoje sente dores no olho.

"Meu olho estava cheio de bactérias quando procurei outro médico. Ele disse que o olho parecia um algodão molhado", diz Antônia Reis, 70.

Naquele momento, todos eles começaram a descobrir o que era viver no escuro.

"Eu não como mais peixe por causa do espinho. Era o que eu mais gostava de comer", conta Antônio Aureliano da Silva, 73. "E não saio mais sozinho de casa."

Os idosos sofrem com tombos constantes e ferimentos nos pés, não conseguem se alimentar sozinhos e muito menos andar pela cidade sem apoio de alguém. "Se eu saio de casa sozinho, não sei se voltarei vivo", diz Francisco Rolim, 81, que também foi obrigado a parar de trabalhar, a exemplo de Railde Lima, 65.

Jandira Lemos, 79, que já tinha problemas em um olho, ficou totalmente cega. À noite, reclama de dores.

Quase nenhum deles consegue distinguir um rosto. "Eu vejo apenas vultos, e só consigo reconhecer meus filhos por causa da voz", conta Senhorinha da Silva, 64.

Alguns procuraram advogados e ensaiaram uma ação coletiva de indenização, mas o processo não foi adiante. "Voltar a enxergar, não vamos. Nossa esperança é que seja feita justiça", diz Freitas.


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