Folha de S. Paulo


Do sertão ao Tietê, catador vive saga da seca

O céu está tão escuro quanto a água do rio onde Macuxi, 62, vai entrar logo mais. São 5h, e ele começa mais um dia de trabalho no Tietê, num tom quase preto de tão poluído. Parece petróleo.

A relação do cearense Antônio Nunes, o Macuxi, com a água é uma verdadeira saga. Enfrentou a seca do sertão, a cheia dos rios amazônicos e agora encara a crise hídrica de São Paulo.

Fim da madrugada. Ele pega sua "carnoa" na margem e começa a passear por um dos braços do Tietê, de onde tira o lixo que o sustenta.

Sem peixes à vista, Macuxi diz que "pescar" 500 kg de garrafas PET por semana -vende o quilo a R$ 0,40 para a reciclagem, no Brás (centro).

"Colchão, sofá, televisão tem direto. Isopor", enumera. Ele mora na margem, em um barraco na favela da Vila Any, divisa da cidade de Guarulhos com o Itaim Paulista, na periferia de São Paulo.

Veja vídeo

Todos os dias, o lixo é trazido pela correnteza fraca. Estaciona na região da Vila Any, onde o nível da água está mais baixo nos últimos meses.

Remando em pé, Macuxi anda pelo rio dentro de uma carcaça de uma Kombi que encontrou abandonada. "Chamo meu barco de 'carnoa', carro com canoa. Vem lixo de todo lado. Sempre digo: moro na fronteira da bosta", comenta, rindo.

O expediente, porém, é curto. Às 10h, com o sol já quente, é hora de abandonar o barco. "Com o calor, o rio ferve. Borbulha." O cheiro fica insuportável -uma "catinga desgraçada."

O governo do Estado tem, desde a década de 90, um programa de despoluição do rio Tietê. Apesar de alguns avanços, grande parte do rio continua acumulando lixo e recebendo água de esgotos.

SAGA DA ÁGUA

Aos 14 anos, Macuxi fugiu da árida Boa Viagem, no Ceará. "Eu tinha que cair no mundo para sobreviver. No Ceará não tinha água para beber, eu não aguentava aquilo", diz.

"O sertão era tão seco que a madeira estralava."

Decidiu fugir: iria para onde tivesse mais água no Brasil, onde chovesse todos os dias. De carona, chegou sozinho a Boa Vista (RR), e foi viver às margens do rio Urubu, afluente do Amazonas -fronteira entre Brasil e Guiana.

Encontrou a água que queria e viveu da pesca por mais de 20 anos. Criou os 12 filhos entre os índios da etnia macuxi -daí seu apelido.

Mas veio a malária, que atacou a família toda. "Os índios nos levaram de cavalo para o hospital mais próximo, que ficava a 40 km."

Antônio Macuxi desistiu da mata e veio para São Paulo há 19 anos. Terra da garoa e do emprego, prometiam os parentes, já migrados.

Oito dias de viagem num ônibus. Quando chegou, foi viver na Vila Any, num barraco do lado do Tietê, onde está até hoje. Desempregado, foi viver da reciclagem.

Mas perdeu tudo várias vezes quando, durante as fortes chuvas, o rio invadia os barracos da favela. "Enchente aqui era brava", conta.

Não é mais. Na região onde vive, o Tietê está mais baixo com a estiagem -também por isso o lixo acumula mais.

"Para mim, é mercadoria. No meio do nada é onde se tem tudo", diz.

Na semana passada, faltou água na favela, mais um sintoma da crise hídrica no Estado. Nenhuma gota na torneira de Macuxi. "A seca voltou, estou quase indo para o Amazonas de novo", diz, olhando para o rio sujo.

Fotografia e reportagem APU GOMES, FELIX LIMA e RODRIGO MACHADO edição DIEGO ARVATE


Endereço da página:

Links no texto: