Folha de S. Paulo


Aos 97 anos, mulher no interior de MG realiza sonho de concluir faculdade

A mineira Chames Salles Rolim, 97, concretizou uma façanha de poucos. Beirando os cem anos de vida, a comerciante de origem libanesa se formou em direito em agosto, em Ipatinga (MG). Agora, a faculdade onde a mãe de dez filhos, com 28 netos e 18 bisnetos, estudou quer que o "Guinness Book" verifique se ela é a mulher mais velha do mundo a se graduar.

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Não gosto de ser chamada de doutora. Sou apenas mais uma bacharelanda em direito. Esse diploma demorou quase uma vida inteira para chegar em minhas mãos. E só chegou porque nunca me poupei diante das circunstâncias da vida.

Nasci em Santa Maria de Itabira (MG), em 1917. Meu pai era libanês e dizia que meu nome significa sol perfeito.

Na minha cidade conheci José, o meu grande amor.

Para dar conta dos dez filhos que tivemos, trabalhamos muito. José abriu uma farmácia e era minha função atender as pessoas. Foram 50 anos atrás de um balcão.

Sempre respondo que o excesso de amor do meu marido adiou o meu sonho de ir à faculdade. Um dia contei a ele que havia me matriculado no curso de filosofia. Não demorou muito, ele reuniu os meus filhos e disse que eu iria abandoná-lo. Ele cortou a minha asa quando ousei finalmente voar. Mas juro que eu não senti raiva dele.

José era extremamente ciumento, mas foi muito paciente no momento mais difícil, quando perdemos Ribamar, nosso segundo filho. Eu pedi a separação. Não queria ter mais filhos para não passar por aquela dor novamente. Mas ele permaneceu ali, firme. Foi a minha salvação.

Os anos foram passando, os filhos crescendo, saindo de casa e, enquanto o sonho não se realizava, encontrei na poesia o meu alento.

Publiquei três livros. O quarto já está pronto.

Depois de 63 anos juntos, José partiu no ano 2000.

Fiquei anos remoendo a sua ausência e pensando que entrar na faculdade seria um desrespeito à sua memória.

Um dia, meu filho chamou a minha atenção. Disse que não havia mais tempo para tanta espera e que eu precisava realizar o meu sonho.

Foi o que eu fiz. Prestei vestibular, aos 92 anos, na Fadipa (Faculdade de Direito de Ipatinga). Lembro da reação dos colegas no primeiro dia de aula. Foi um espanto!

Ingressei no curso com duas filhas, que desistiram, e mais uma neta, que se forma no final deste ano.

Para fazer a primeira prova dei um "sustinho" na família. Fui parar na UTI, por nervosismo, acho. Em casa, tive um princípio de infarto e derrame. A minha boca ficou meio torta e parte da visão, comprometida.

Mas não desisti. Não fui uma aluna brilhante, mas metódica. Era a primeira a chegar e a última a sair.

Durante o curso, consegui unir um casal em uma audiência de conciliação, aqui no fórum. Eles são meus amigos hoje. Estão felizes.

Se não fosse a minha idade avançada, abriria um consultório de conciliação gratuito para casais. Isso aliviaria a demanda na Justiça, não é mesmo? Escrevi minha monografia, à mão, sobre os direitos dos meninos de rua.

A minha colação de grau foi emocionante. Um filme de 97 anos passou na minha cabeça no momento em que peguei o meu diploma.

Ainda não pensei sobre a prova da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]. O meu coração está dolorido em razão das últimas perdas na família. Preciso jogar a minha dor nas ondas do mar para voltar a ser quem eu sou.

Aos 97, vejo que tenho muitas arestas. Ainda estou sendo lapidada. Mas sou feliz.

Quero continuar tomando o meu uísque com água de coco e fazendo hidroginástica. Quem sabe, assim, com muita saúde, eu ainda consiga ver o nascimento do meu primeiro trineto?


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