Folha de S. Paulo


Remédio não basta para hiperatividade, diz médico

Na última semana, ao menos dez entidades médicas fizeram manifestos contrários à decisão da Prefeitura de São Paulo de restringir a oferta de remédio indicado para crianças e adolescentes hiperativos ou com deficit de atenção.

Mas, para o psiquiatra e psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira, 53, a medida da prefeitura é saudável e acende um "alerta amarelo" sobre o excesso de diagnóstico de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade).

Professor livre docente da Unicamp e titular da Universidade Aix-Marseille (França), ele diz que está faltando aos médicos serem mais clínicos e associarem ao diagnóstico contextos familiares, escolares e sociais. A seguir, trechos da entrevista à Folha.

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Folha - Como o sr. avalia a decisão da prefeitura?
Mário Eduardo Costa Pereira - Acho muito saudável, desde que não seja apenas uma medida administrativa. Pode ser um sinal amarelo, uma amostra de que existe um mal estar, de que a sociedade está preocupada e que não é uma coisa banal essa história [de medicalizar cada vez mais]. Talvez as coisas sejam um pouco mais complexas. Talvez isso leve a sociedade pensar se é normal dar Ritalina às crianças cada vez mais cedo só porque um consenso americano diz que é assim.

O sr. é contra a medicação?
Não sou contra diagnosticar e medicar. É claro que, se uma criança fica muito desadaptada, pode medicar. Mas, fazer disso um problema de saúde pública, dizer que uma em cada 20 crianças precisa de Ritalina, é outra história. Não posso só fazer o diagnóstico, prescrever metilfenidato [medicamento] e um abraço. Tem que ver o que está acontecendo com a família, com a escola, com a sociedade. Está faltando clínica psiquiátrica. Volto a dizer: minha posição não é antipsiquiatria, sou contra a psiquiatria acrítica.

Estudos mostram que as pessoas com TDAH têm alterações neurocerebrais, o que justificaria a medicação...
Há todo um discurso travestido de biologia pura. No TDAH existe uma composição de fatores biológicos e sociológicos que você não sabe como se articulam. Mesmo que o TDAH tivesse 100% causas biológicas, ainda assim teria que ser visto dentro de um contexto maior. Peguemos o exemplo da síndrome de Down. Há 30 anos, quando uma criança nascia com a síndrome, o médico dizia: 'Ele tem alteração biológica incurável, será retardado mental e morrerá mais cedo'.
E morria mesmo. Não pela causa biológica, mas porque ninguém investia nele. Hoje, está aí na sociedade, trabalhando, envolvido em projetos culturais, casando. Isso não melhorou por causa de tratamentos biológicos. Mudou porque a gente começou a estimular essas crianças precocemente, a investir numa educação específica. Guardadas as proporções, por que não ter a mesma atitude em relação ao TDAH?

A questão é que a psiquiatria exercida hoje é quase sinônimo de medicação...
Essa não é uma voz hegemônica, um discurso único. Há muitos psiquiatras que pensam diferente. A questão hoje é que o sujeito, desde a faculdade, tem uma orientação voltada para a pesquisa experimental. O que falta são psiquiatras mais clínicos, que se sirvam de uma maneira mais crítica e menos servil dos instrumentos que têm.

A sua crítica é ao DSM-5 [manual de diagnóstico]?
Não estou dizendo que não tem que ter manual de diagnósticos. A questão é o manual se transformar no centro da prática clínica, ser o objeto de controle da prática médica. O médico passa a ser um instrumento do instrumento. Os residentes, os estudantes só estudam o manual, não conhecem psicopatologia, não sabem entrevistar um paciente. O DSM é uma composição de forças com fatores biológicos, psicológicos, políticos e econômicos. Essas forças mudam a cada edição e nunca são baseadas exclusivamente em ciência pura.

O que sr. diria aos pais?
Diria que o diagnóstico não é o espelho do seu filho, é só um instrumento, um elemento prático que orienta algumas tomadas de decisões. Diria para se cercar de profissionais que entendam da técnica, mas que também tenham uma visão global do seu filho, que vá além dos critérios estabelecidos nos consensos norte-americanos.


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