Folha de S. Paulo


Em pesquisa, pilotos dizem já ter cochilado a bordo sem querer

Uma pesquisa com pilotos de companhias aéreas brasileiras aponta que 57% dos profissionais entrevistados disseram ter cochilado, sem intenção, enquanto estavam na cabine de comando.

A causa possivelmente são os turnos de trabalho, que incluem madrugadas seguidas.

O levantamento, feito por uma pesquisadora a pedido da Abrapac (Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil), ouviu 1.122 pilotos de voos domésticos entre dezembro de 2013 e março.

Apu Gomes/Folhapress
Cabine de avião estacionado no aeroporto de Cumbica (SP)
Cabine de avião estacionado no aeroporto de Cumbica (SP)

Foi a primeira vez que a fadiga da tripulação e a sonolência foram tratados no Brasil com essa abrangência. Há 5.966 pilotos de linha aérea no país, diz a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).

As empresas aéreas não contestaram a pesquisa.

Dormir a bordo involuntariamente constitui infração na maioria das empresas. Consultadas, TAM, Gol, Azul e Avianca não informaram se já puniram alguém por isso.

Pior: o cochilo representa risco à segurança, uma vez que a atividade dos pilotos dentro da cabine, como monitorar as condições do avião e falar com o controle de tráfego aéreo, exige atenção constante.

Demonstra, também, exaustão dos pilotos, incapazes de se manter acordados.

Em voos domésticos, são dois tripulantes na cabine, o comandante e o copiloto; se um dorme, aumenta a carga de trabalho do outro.

NÃO INTENCIONAL

Uma das responsáveis pela pesquisa, Elaine Marqueze, doutora pela USP, diz que os pilotos possivelmente cochilam porque acordam para trabalhar -ou já estão em serviço- no melhor horário para dormir: entre as 3h e as 4h.

Nessa hora, a temperatura corporal está baixa e os níveis de melatonina (hormônio do sono) elevados.

Ela já estudou o sono dos caminhoneiros e apresentará o estudo com os pilotos no Congresso Brasileiro de Epidemiologia, em setembro.

Na pesquisa, os pilotos disseram trabalhar em média quatro madrugadas seguidas.

Com o Sindicato Nacional dos Aeronautas, a Abrapac defende projeto de lei, em andamento no Senado, que limita a duas o número de madrugadas consecutivas que os pilotos trabalham. O texto foi aprovado na comissão de assuntos sociais em junho, mas pode receber ajustes.

No mundo, não é totalmente proibido que um piloto cochile a bordo –de modo intencional e planejado, diferentemente do que concluiu o estudo brasileiro.

A depender da situação, a soneca chega a ser estimulada, para melhorar a atenção.

Maior autoridade mundial no setor, a Oaci (Organização de Aviação Civil Internacional, ligada à ONU) prevê o "descanso controlado", um cochilo por até 40 minutos, como maneira de atenuar o risco de fadiga dos pilotos.

Esse é o tempo que um ser humano pode descansar sem cair no sono profundo, segundo pesquisa feita nos anos 1990 pela Nasa (agência espacial americana). O cochilo proposital é capaz de deixar os pilotos mais alertas.

A regra da Oaci prevê que um dos pilotos fique acordado para o outro dormir e que o avião esteja em piloto automático e etapa de cruzeiro.

Como é comum na aviação, a norma foi resposta a acidentes em que o cansaço de pilotos foi fator contribuinte. Em maio de 2010, por exemplo, um Boeing 737-800 da Air India caiu ao tentar pousar.

A apuração concluiu que o comandante dormiu durante o voo e que a desorientação o fez errar. O acidente resultou em 158 mortos.

As autoridades de aviação civil da Europa, dos Emirados Árabes e do Canadá, entre outras, preveem o sono controlado. A norma também é endossada pela Iata (associação que reúne a maioria das empresas aéreas no mundo). O Brasil ainda não tem legislação a respeito.

AÉREAS DIZEM CONTROLAR JORNADAS

Sem tratar dos cochilos, TAM e Gol disseram controlar as jornadas dos tripulantes e manter programas de gerenciamento de fadiga.

A TAM acrescentou que entre as medidas que adota está reduzir o trabalho na madrugada e folgas por dois dias seguidos. A Avianca não respondeu e a Azul indicou a Abear para falar.

A Abear diz que a pesquisa "é mais uma fonte de conhecimento técnico-científico, entre diversas, a fornecer diferentes perspectivas sobre fadiga". A entidade diz ser favorável ao debate sobre mudanças na lei do aeronauta –criou um comitê para tratar com os pilotos.

Os tripulantes brasileiros trabalham menos horas do que os dos EUA, diz a Abear.

A Anac diz auditar o sistema de gerenciamento de risco de fadiga das empresas. Afirma ainda que relatórios de prevenção e as denúncias de fadiga indicam que a implantação pelas empresas do sistema de gerenciamento de risco de fadiga tem sido eficaz para prevenir violações. E diz que, em voos internacionais, a tripulação tem três ou mais pilotos.


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