Folha de S. Paulo


'Mães provisórias' cuidam de mais de mil crianças no país

Em cinco anos, Maria do Carmo Martins, 56, já foi "mãe" de nove crianças.

De uma vez, cuidou de três irmãos. Em outra, de uma bebê prematura, a qual visitou todos os dias ainda no hospital, por meses, apenas para colocá-la no colo. Na última, foram gêmeos, ainda bebês.

Desempenhar o papel de mãe, neste caso, pode ser ainda mais difícil. "Já tive criança sem vínculo de afeto, com abstinência alcoólica e que havia passado fome", relata Maria do Carmo, que tem a ajuda das duas filhas para, a pedido da Justiça, "acolher" crianças temporariamente em sua casa, em Belo Horizonte.

Na prática, é como se a criança ganhasse uma família temporária enquanto uma equipe técnica trabalha para reestruturar a dela própria. "São como meus filhos, só que emprestados", afirma.

Alternativa aos abrigos tradicionais, o país tem hoje 1.390 crianças sob cuidados de pessoas que exercem o papel de "mães" e "pais" temporários. Há três anos, eram 932, de acordo com o Ministério de Desenvolvimento Social, que normatiza a serviço.

O número, embora ainda pequeno perto do total de crianças abrigadas –46 mil, segundo o Conselho Nacional de Justiça– revela uma modalidade de acolhimento que, pouco a pouco, começa a ganhar espaço no país.

Hoje, 372 municípios, em ao menos 19 Estados, apresentam programas de acolhimento familiar para crianças separadas temporariamente da família de origem. A maior parte deles está localizado nas regiões Sul e Sudeste –puxam a lista cidades de SC, PR, RJ e MG.

A medida, no entanto, não é uma adoção nem pode se transformar em uma ao final de período de acolhimento.

Funciona assim: separada dos pais por ordem da Justiça, a criança passa a morar com uma família acolhedora, de quem recebe cuidados até que a situação seja resolvida.

O prazo máximo de acolhimento é de dois anos. Se, até lá, o risco à criança persistir, ela pode seguir à adoção por uma família substituta e definitiva, já à espera na lista.

Apesar de ainda tímida no país, a iniciativa tem apoio do Estatuto da Criança e do Adolescente que, desde 2009, prevê que o acolhimento familiar "terá preferência" em relação ao institucional.

Para especialistas ouvidos pela Folha, é justamente essa mudança da lei, somada à busca por uma alternativa aos abrigos, que agora leva mais municípios a procurar informações sobre isso.

Curitiba e São Paulo são exemplos disso: as duas cidades planejam implantar o serviço no próximo semestre.

O objetivo é dar atendimento individualizado à criança. "A criança se desenvolve rapidamente quando encontra um ambiente protetor", afirma a psicóloga Cláudia Cabral, diretora-executiva da Associação Terra dos Homens –uma das primeiras entidades a apoiar projetos de acolhimento familiar no país, em 1996.

IMPASSES

A medida, porém, ainda divide o próprio poder público e membros do Judiciário. O corregedor do CNJ, Francisco Falcão, também ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), vê prós e contras.

"Nada melhor que, em situações de risco e na ausência de membros da família extensa, a criança seja colocada em acolhimento familiar, ao invés de um abrigo".

Ele, porém, também vê pontos negativos nesse tipo de medida. "A convivência pode vir a ser boa demais, o que pode causar sérios traumas quando da reversão".

Responsável por um dos serviços de acolhimento familiar mais antigos –o Sapeca, em Campinas (SP)–, Cláudia Russo não vê esse risco.

"Temos encontros semanais com a família de origem, aqui [sede]. A criança sabe que tem uma família e está acolhida por outra enquanto a dela está se recuperando."

Andrigo Carvalho, coordenador do programa "Famílias de Apoio" em São Bento do Sul (SC), concorda.

"A criança vai ter uma configuração familiar diferente daquela que ela tem, mas ela vai ter afeto. Muitos questionam: mas a realidade que ela vai voltar não é essa. Mas se isso acontecer não é uma reintegração familiar efetiva."

Já para o promotor Antônio Ozório Nunes, da comissão de infância e juventude do Conselho Nacional do Ministério Público, o principal impasse está na falta de divulgação sobre o serviço.

"Há um desconhecimento inclusive dos órgãos do próprio sistema de garantia de direitos [da criança]." Investir em capacitação e encontrar famílias interessadas apenas em acolher, e não em adotar, também são desafios.

"O acolhimento pode ser muito benéfico para a criança, mas se for feito como um serviço, com equipe técnica e famílias cuidadosamente selecionadas e capacitadas para conhecer as reações da criança e para trabalhar a questão do afeto sem a posse", diz Ana Angélica Melo, especialista em políticas públicas e técnica do serviço de acolhimento no Ministério de Desenvolvimento Social.


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