Folha de S. Paulo


Antes de linchamento, retrato causou pânico entre moradores

A imagem de um retrato falado fazia as mães do bairro de Morrinhos, em Guarujá, tremerem de medo há pelo menos duas semanas.

Crimes macabros passaram a ser atribuídos à figura do desenho em preto e branco divulgado pela página do Facebook "Guarujá Alerta". Ela era descrita como uma suposta sequestradora que matava crianças em rituais de magia negra.

"Disseram que ela tinha arrancado o olho de uma criança de dois meses", contou à Folha uma jovem de 14 anos.

Joel Silva/Folhapress
Fabiane Maria de Jesus, 33, morreu após ser espancada por moradores de Guarujá (SP)
Fabiane Maria de Jesus, 33, morreu após ser espancada por moradores de Guarujá (SP)

Com mais de 55 mil seguidores, a página "Guarujá Alerta" é uma referência em Morrinhos, bairro pobre da cidade. Ela presta serviços como divulgação de documentos perdidos e cães sumidos.

"De cada dez, oito conhecem o Guarujá Alerta", diz a dona de casa Ivete dos Santos, 37. "No caso desse post, uma pessoa foi falando para a outra e a história cresceu".

"A toda hora chegavam novas histórias de crianças sequestradas", diz Fabiana Ferreira, 36, funcionária de uma creche no bairro. "Fiquei com medo de entregar alguma em mãos erradas."

Na escola, a segurança Alessandra Rodrigues, 33, já havia recomendado que a filha tomasse cuidado com estranhos. "Até hoje as crianças continuam com medo que alguém venha pegá-los."

O boato só terminou com a morte da dona de casa Fabiane de Jesus, 33. No sábado, ela foi confundida com a suposta criminosa e linchada.

Ontem, parte da história do boato começou a ser explicada. A Polícia Civil do Rio anunciou que fez o retrato falado em 2012. O objetivo era localizar uma mulher negra e gorda, acusada de tentar sequestrar uma criança e agredir sua mãe na capital fluminense. A suspeita até hoje não foi encontrada.

De acordo com o advogado do administrador do "Guarujá Alerta", essa mesma imagem chegou à página por volta do dia 25 de abril, atribuída a uma mulher que supostamente sequestrava crianças para magia negra.

Ainda segundo a defesa, a imagem foi retirada após o responsável pela página perceber que era um boato.

Dias antes de morrer, Fabiane de Jesus trocou o corte de cabelo longo e avermelhado por um mais curto e com mechas loiras. O resultado lembra pouco a pessoa do retrato, exceto pelo cabelo.

Familiares contam que Fabiane era conhecida no bairro. Após perder dois filhos em dois dos quatro partos que fez, ela desenvolveu um distúrbio bipolar que a fazia perder noção da realidade.

"Ela costumava sair de bicicleta, conversava com todos e dizia que era assessora da Maria Antonieta [de Brito, prefeita do Guarujá]", conta o amigo Márcio Silveira, 40.

Apesar de não trabalhar para a prefeitura, a dona de casa frequentava a mesma igreja de Maria Antonieta, que é do bairro.

Fabiane foi vista saindo de casa na noite de sexta-feira. Não voltou mais.

Por volta do meio-dia de sábado, passou em frente a uma área movimentada onde há um mercado e um ponto de venda de drogas.

Carregava uma Bíblia que havia emprestado a uma amiga e pegara de volta. A publicação foi confundida com um livro de magia negra, e alguém gritou que Fabiane era a criminosa procurada.

Ainda segundo relatos, a mulher disse algo desconexo que foi interpretado como uma confissão e, então, começou o ataque.

A mulher foi arrastada a uma área mais pobre do bairro conhecida como Morrinhos 4, onde a população vive em palafitas.

Um vídeo gravado durante o ataque mostra ela chutada, arrastada e puxada pelos cabelos. Um homem passa com uma bicicleta sobre sua cabeça. Entre os agressores, estariam frequentadores do ponto de tráfico.

Policiais disseram à Folha que o local é perigoso e não costumam trafegar em menos de duas viaturas por ali.

editoria de arte/folhapress

MARIDO

Morador de Morrinhos 1, uma área mais sossegada do bairro, o marido, o porteiro Jaílson Alves das Neves, 40, só soube do caso sete horas depois.

Viu fotos da sua mulher, de quem não tinha notícias desde o dia anterior, divulgadas em páginas do Facebook como se fossem de uma criminosa agredida.

"As irmãs dela acharam que podia não ser, mas eu conheço a minha mulher", disse Neves, que se apaixonou por Fabiane, sua prima, na festa de 15 anos dela.

Horas após o enterro, ontem, ele fez um apelo contra a violência. "As pessoas têm que parar de fazer justiça com as próprias mãos porque correm o risco de matar outras mães de família como a minha mulher."


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