Folha de S. Paulo


Um ano após tragédia, Santa Maria se divide entre luto e cansaço

No dia seguinte ao incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS), 35 mil pessoas saíram às ruas do município cobrando punição aos responsáveis pela tragédia.

Amanhã, quando completar um ano o incêndio que matou 242 pessoas, as manifestações programadas deverão reunir só uma pequena parcela daquela multidão.

A comparação é um retrato de uma cidade dividida.

Enquanto parte dos moradores quer esquecer o que aconteceu e retomar a rotina da cidade, familiares e vítimas mantêm a mobilização, apontando falta de resultados das investigações.

Jorge Araujo/Folhapress
Jovem vê fotos de vítimas da tragédia em barraca montada em praça de Santa Maria (RS)
Jovem vê fotos de vítimas da tragédia em barraca montada em praça de Santa Maria (RS)

No comércio e no empresariado, o temor é que o abatimento da população gere a estagnação da cidade.

Os lojistas consideram 2013 um dos piores anos da economia local –em parte pela queda nas vendas associada à consternação pela tragédia.

Em editorial, o principal jornal local, o "Diário de Santa Maria", afirmou que empresários estavam procurando a redação com pedidos para reduzir a cobertura da tragédia, o que ajudaria a cidade a recuperar o ânimo.

"Às vezes, a associação [de famílias de vítimas] quer que a cidade tenha a mesma dor deles. Parece que forçam a situação", diz o empresário Luiz Fernando Pacheco, 46, que preside a Câmara de Comércio e Indústria local.

Adherbal Ferreira, 49, que perdeu a filha no incêndio e é um dos líderes da associação de famílias, afirma que os críticos não conseguem se colocar no lugar dos afetados pela tragédia.

"Tem gente que acha: 'Deu, vamos parar com esse assunto'."

A mobilização dos parentes dos mortos aumentou após a libertação, em maio passado, de quatro réus que respondem por homicídio devido à tragédia –dois sócios da boate, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira e o produtor do grupo.

O fogo na casa noturna começou após o vocalista usar um artefato pirotécnico no palco. As chamas atingiram uma espuma fixada no teto, que liberou a fumaça tóxica.

Liderados por um movimento autônomo de familiares chamado "Do Luto à Luta", parentes acamparam na Câmara Municipal, bloquearam uma rodovia e vem promovendo caminhadas.

Uma das últimas passeatas, no último dia 20, reuniu menos de cem pessoas.

Eles também mantêm, na principal praça da cidade, uma barraca fixa com fotos das vítimas. A cada dia, uma família é escalada para ficar de "vigília" no local.

Na cidade, pouca gente se dispõe a comentar a divisão abertamente. A professora Helena Rosa, que perdeu dois filhos no incêndio, diz que há pessoas que xingam os familiares que fazem a vigília.

"Dizem que deveríamos deixar os mortos descansarem, que a cidade está morrendo por nossa causa. Não sei se é insensibilidade ou ignorância", declara.

O militar da reserva Nilson Hartmann, 66, considera que as famílias têm razão de protestar, mas acha que "não leva a nada" a mídia insistir no caso. "Quanto mais falam, pior é, mais complexado fica o pessoal. Não adianta atirar pedra no prefeito."

MOTIVAÇÃO

Enquanto alguns pais de jovens têm nos protestos uma motivação para o período de luto, outra parte das famílias prefere não participar.

Mãe de dois mortos no incêndio, Elaine Gonçalves, 62, apoia a associação dos familiares, mas achou melhor se retirar das manifestações.

Ela afirma que a participação em atos de memória piora seu sentimento de perda.

"Deitávamos no asfalto representando os mortos. Mas achei muito pesado, aquilo doía demais em mim. E, quando entrou a política no meio, eu saí", diz Elaine.

Marta Beurer, 63, que perdeu um filho no incêndio, esteve em um protesto que se prolongou por dias na regional do Ministério Público.

Diz que participa por opção pessoal diante da perda.

"Foi a forma que achei de ir superando, de dar uma resposta a meu filho, da falta que ele me faz", afirma.

Colaborou MELINA GUTERRES, em Santa Maria (RS)


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