Folha de S. Paulo


Judith Brito: Surto social

Diante das recentes manifestações das ruas, os mais honestos confessaram sua surpresa e incapacidade para decifrá-las. O fato é que não há explicação fácil e única, restando alinhar algumas pistas.

Primeiro, o pano de fundo histórico-social: insatisfações coletivas sempre existiram e existirão em sociedades de massa, especialmente nas mais carentes e desiguais. O oposicionismo urbano, que tem se manifestado em ondas no Brasil, é resultado desse fenômeno.

Normalmente, a expressão inicial dessa insatisfação é feita pela classe média intelectualizada dos maiores centros, ganhando corpo com a adesão de contingentes urbanos mais pobres e finalmente se espalhando pelas regiões menos desenvolvidas.

A transição da ditadura para a democracia é um exemplo: a vocalização inicial dos protestos ocorreu nos meios universitários da região Sudeste, e o oposicionismo (favorável ao MDB) foi se fortalecendo em ondas, eleição a eleição, nas periferias pobres das grandes cidades como São Paulo, até se espalhar pelo país e se tornar hegemônica.

A tendência ao crescimento de movimentos oposicionistas é favorecida, no plano sociopsicológico, pela sensação de pertencimento ao "lado bom", o povo, que constrange (quase) todos a um mesmo lado, a uma mesma opinião.

A internet exponencializa essa tendência, dando-lhe também caráter inesperado, com focos que se espalham como rastilho de pólvora. Esse fenômeno tem se mostrado em várias partes do mundo, em eclosões surpreendentes como as da praça Tahrir e em outros protestos da Primavera Árabe, ou ainda no Occupy Wall Street, movimento que se declara sem lideranças e sem dependência de políticos, com propósitos difusos de protesto contra a desigualdade social, o poder das grandes corporações financeiras, a corrupção etc.

A confluência desses dois vetores --o inconformismo latente (e mobilizável pela juventude intelectualizada) e a facilidade de mobilização meteórica da internet-- é uma novidade no cenário político mundial e tem impacto também o comportamento bipolar da população brasileira.

Não havia nada de previsível no que aconteceu --ao contrário do que apregoam alguns. Há poucas semanas, a presidente Dilma Rousseff desfrutava de enorme aprovação em pesquisas (especialmente entre os mais pobres, favorecidos por programas sociais), e sua reeleição em 2014 era considerada favas contadas. Além disso, a (frágil) oposição não encontrava eco diante dos números do apoio à situação --exceção feita à alternativa do discurso sustentável de Marina Silva.

Quem diria que uma manifestação que originalmente reuniu 150 estudantes em São Paulo, com um propósito não exatamente abrangente (o preço do transporte público), mudaria o país, fazendo os índices de aprovação de governantes despencarem ladeira abaixo?

Ajudou o comportamento inicial equivocadamente repressor das forças policiais, que rapidamente transformou os manifestantes em vítimas. Nas redes sociais das camadas mais escolarizadas, polícia dificilmente é bem vista (assim como governos, empresários e quem quer que detenha poder).

O rastilho de pólvora estava aceso. Novos contingentes foram convocados às ruas, retroalimentados pela quase unanimidade da aprovação nas redes sociais e nos meios midiáticos tradicionais (com exceção do vandalismo), fazendo explodir uma infinidade de criativas demandas de cunho econômico, político e social, numa festa de ecumenismo cívico. O movimento cresceu, resultando na enormidade da transformação em curso.

Os próximos capítulos também são imprevisíveis. Os três Poderes foram atingidos, em especial o Executivo e o Legislativo, e os heróis são poucos (Joaquim Barbosa talvez seja o maior, por ter capitaneado, no julgamento do mensalão, a vontade popular de ver políticos atrás das grades).

Trata-se de uma rejeição mais ampla à política --a exemplo do que defende o Occupy--, que aqui no Brasil vinha sendo fermentada e atingiu graus elevados pelo descolamento do poder em relação às ruas.

De fato, os últimos tempos espelham uma espécie de grande baile da ilha fiscal: o Executivo multiplica ministérios "negociados"; a Fifa manda construir estádios caros (ainda mais encarecidos por má gestão e/ou suposta corrupção); condenados do mensalão continuam a desfilar tranquilamente em suas funções legislativas e partidárias; parlamentares que simbolizam o antigo coronelismo político, com imagem altamente negativa, ostentam sua liderança e visibilidade política; projetos polêmicos (e que desagradam os jovens e intelectuais), tais como a PEC 37 e o da cura gay, tramitaram ruidosamente no Congresso etc.

No dia a dia, a morosidade (entendida também como incompetência) do Judiciário, do Executivo e do Legislativo perpetua o inferno urbano, principalmente nos casos da segurança pública, do transporte e da saúde.

O movimento das ruas ganhou, assim, clima de queda da Bastilha, e a reação dos atingidos foi vestir a carapuça: todos correram para acalmar as massas, atendendo-as no que antes diziam ser impossível: tarifas foram reduzidas, verbas foram alocadas para educação e saúde, o Parlamento cancelou férias e começou a concluir votações paradas há tempos, o Judiciário mandou prender um deputado.

Não sem razão, surgiu a preocupação em relação à incerteza futura. A efervescência das redes sociais exibiu "unanimidades" e, em muitos casos, o ingênuo romantismo anárquico --não apenas entre jovens-- de imaginar que a instância política é dispensável, como se existisse sociedade sem política ou sem o "contrato social" implícito, com regras estabelecidas para a convivência das opiniões divergentes e uma força constituída que garanta o cumprimento dessas regras.

Há uma euforia com uma suposta democracia direta que ignora o fato de a humanidade ter, por tentativa e erro, aprimorado seus modelos de convivência, até concluir ser o democrático o menos pior de todos, ao prever a canalização das vontades por meio de partidos e o poder dividido em instâncias, para tentar evitar sua concentração.

O surto romântico ignora o fato de que nenhum modelo nunca será perfeito, porque os homens são falíveis e imperfeitos. Não se pode julgar a democracia pelas mazelas produzidas por atores políticos específicos.

Há um sentimento de "justiça com as próprias mãos" e de representação espontânea da maioria, "o povo", como explicita o slogan do Occupy: "We are the 99%". No entanto, por maiores que sejam as multidões que vão às ruas (saindo do Facebook) e por mais que possam expressar opiniões de fato majoritárias, não há como imaginar tais conjuntos aleatórios como representantes permanentes do povo.

O gigante acordou e fez eventos emocionantes, mas precisa saber o que fazer depois de se fazer ouvir: como exigir mais transparência dos governantes, como canalizar sua voz para consequências práticas, como usar esses canais democráticos de manifestação para que seus representantes cumpram o que prometem.

JUDITH BRITO é diretora-superintendente da Empresa Folha da Manhã S.A., que edita a Folha


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