Folha de S. Paulo


Chefs e ativistas usam novas fronteiras para pensar a gastronomia do Brasil

Sergio Coimbra/ Divulgação
Pintado grelhado com caapeba salteada, farofa de jatobá e purê de banana da terra, inspirado no Pantanal, da chef Bel Coelho
Pintado grelhado com caapeba salteada, farofa de jatobá e purê de banana da terra, da chef Bel Coelho

Sobre um prato de cerâmica, estão acomodados pintado defumado, farofa de jatobá enroscada em caapeba e purê de banana-da-terra. E o que vem a ser caapeba, jatobá?

O menu mais maduro que a chef Bel Coelho já elaborou, servido sob reserva ao longo de curtas temporadas em seu Clandestino, em São Paulo, causa certo incômodo ao colocar o público em contato com ingredientes nunca dantes degustados -e nem sequer observados, nus e crus.

Tem um valor, portanto, de educar. "As pessoas não querem consumir o que não conhecem. Formar um consumidor também promove e conserva a biodiversidade", diz Gabriel Menezes, diretor do Auá, um instituto de empreendedorismo socioambiental que trabalha com a divulgação do uso de espécies nativas da mata atlântica.

Se avançarmos, pode-se dizer que o cardápio de Bel Coelho também protege espécies que correm o risco de desaparecer, uma vez que as coloca em uso -em que se pese a quantidade irrisória.

A propósito, caapeba é uma planta alimentícia não convencional cujo sabor remete a um apanhado de temperos, e jatobá, uma fruta de casca dura e polpa adocicada que, cozida, exala um perfume de jaca, típica do Cerrado e ameaçada de extinção.

Em seu menu, ela propõe um passeio pelos biomas e engrossa um coro de cozinheiros e ativistas que têm visto o Brasil gastronômico de um novo ponto de vista.

Parece haver o consenso de fontes ouvidas pela Folha de que as divisões sociopolíticas determinadas pelo IBGE, enraizadas no nosso imaginário desde os anos 1940, começam a se desfazer no âmbito da culinária. "Houve um esgotamento dessa lógica", diz o sociólogo Carlos Alberto Dória.

Serve de ilustração para algumas incongruências o fato de a indústria do turismo se fixar na cozinha praieira para caracterizar a culinária do Nordeste e deixar no anonimato o que se come no sertão, por exemplo. No Sul, em que destaca-se o churrasco, ficam escanteados ingredientes simbólicos, como o mate.

"Faz muito mais sentido dividir o Brasil gastronômico pelos biomas e não pelas regiões", diz Bel Coelho, que andou debruçada em pesquisas e viagens para garimpar ingredientes nacionais.

Foi Alex Atala (e seu instituto Atá), no entanto, que levou o termo da ecologia enfaticamente à mídia ao abrir os boxes de biomas no Mercado de Pinheiros, neste março.

Mas, enfim, que diabos são biomas, noção já experimentada no século 19?

Bel Coelho toma emprestada a definição de seu sogro, José Mariano Amabis, doutor em biologia, com o qual rascunha um livro sobre o tema. "Bioma é um conjunto de ecossistemas terrestres com vegetação característica e paisagem típica no qual predomina certo tipo de clima."

COMER BIOMA

Não é de hoje que o cozinheiro Gabriel Broide, à frente do Mina, em Campos do Jordão, no qual usa o que está "ao alcance das mãos", trabalha com o conceito. "Estamos nos apropriando desse termo técnico para explicar o que a gente faz."

Diante do furdunço que a abertura dos boxes de Atala causou, Carlos Alberto Dória fez uma provocação em seu blog: "Eu não como bioma".

"As pessoas comem produtos concretos, frutas, legumes, independentemente da origem", diz à Folha. "Bioma não é uma categoria explicativa da culinária, é uma explicação botânica, que não está ligada a nenhum processo de produção."

Bem, sobre "comer biomas", Beto Ricardo, fundador do ISA (Instituto Socioambiental), diz que eles estão sob forte ameaça por formas de exploração econômica predatórias no Brasil. "Estão literalmente comendo os nossos biomas."

Nem biomas, nem Estados. Dória busca um "caminho do meio" para refletir sobre uma nova lógica de divisão do Brasil, desde outrora, quando publicou a primeira edição de "A Formação da Culinária Brasileira" (editora Publifolha), em 2009.

Ele leva em conta as diversidades botânica e histórica, uma associada à outra, e propõe um redesenho do território que parte do que chama de "manchas de ingredientes".

"A natureza desenhou os biomas mas eles, em si, não relevam o uso dos ingredientes. Uso é uma coisa cultural. Precisa da história e da antropologia."

Pois Paulo Inácio Prado, do Instituto de Biociências da USP, desperta a atenção para o fato de que todos os biomas são ocupados por pessoas. "Se esses produtos estão sendo produzidos graças a um conhecimento tradicional, isso também é positivo. A biodiversidade também pode estar ligada a uma diversidade cultural. "

O empório do qual o Auá participa no Mercado de Pinheiros, aos olhos do instituto, tem como missão conservar os biomas.

"Quando a gastronomia consome esses produtos ou ajuda a divulgá-los, ela fomenta a existência desse tipo de mercado e conserva o bioma", diz Menezes. "A mudança de escala vai acontecer com o engajamento dos populares, quando o cambuci [fruto ácido da mata atlântica] virar a laranja para o suco."

SERVIÇO
CLANDESTINO
O QUÊ menu dos biomas brasileiros
QUANDO 13 a 16 de abril; 10 a 14 de maio
QUANTO R$ 260 e R$ 380 (harmonizado)
RESERVA (11) 2861-0010

O QUE É

Bioma
Região com clima característico e certo conjunto de espécies animais e vegetais

DE ONDE VÊM OS SABORES

Amazônia
Floresta úmida de terra firme, tipos de matas, campos abertos e espécies de cerrado. É importante reserva de água doce e de biodiversidade)
Ingredientes filhote (peixe de água doce de sabor delicado) e jambu (erva que amortece a boca)

Caatinga
Predominante no nordeste do Brasil, tem vegetação seca e espinhosa, por causa da escassez de chuva
Ingredientes umbu (suculenta, aromática e agridoce) e coroa de frade (cacto usado em doces e bolos)

Cerrado
No Planalto Central, o cerrado tem árvores baixas, arbustos e gramíneas
Ingredientes pequi (fruta amarela e perfumada) e castanha de baru (sabor que lembra amendoim)

Pantanal
Área de transição entre cerrado e região amazônica, tem ecossistemas periodicamente inundados
Ingredientes jacaré (de carne branca e sabor suave) e jatobá (vagens de casca dura e polpa adocicada)

Mata Atlântica
Rica em espécies de fauna e flora, hoje tem apenas 7% de sua cobertura florestal original. Concentra os recursos hídricos que abastecem 70% da população brasileira
Ingredientes cambuci (levemente doce, adstringente e bastante ácida) e uvaia (fruta amarela e pequena, azedinha)

Campos sulinos/Pampas
De relevo com topos mais planos, tem vegetação rala, pobre em espécies, que fica mais densa nas encostas, com gramíneas e leguminosas. Há também matas de araucárias, semelhantes à savana
Ingredientes erva-mate (aromática e amarga, usada no chimarrão) e butiá (fruta ácida, doce e aromática)

Biomas Costeiros
Ao longo do litoral, há manguezais, restingas, praias, costões rochosos, falésias e outros ambientes ecológicos, com diferentes espécies
Ingredientes manjuba (pequeno peixe de água salgada) e caju (suculento e doce)

Fontes: Ministério da Agricultura, IBGE e "Misture a Gosto" (ed. Melhoramentos)


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