Folha de S. Paulo


Fechamento de restaurantes coloca em xeque modelo com cardápios imensos

Rafael Campos Rocha
crédito: Rafael Campos RochaIlustração para matéria de

Mesas cobertas por toalhas, em que são servidas porções fartas, cobertas por molhos densos. Nas paredes de um longo salão, fotografias de famosos, autografadas, se acumulam. Pode haver também, no teto, algumas camisas de futebol penduradas.

O modelo, velho conhecido de paulistanos, acaba de perder um de seus representantes, o Gigetto. Aberta em 1938, a cantina fechou as portas depois de mudar de endereço e atravessar um período difícil –com salários atrasados e itens do cardápio faltando nos estoques.

Especializado em frango e polenta em São Bernardo do Campo, o gigantesco São Judas, que funcionou por seis décadas e chegou a atender 11 mil pessoas em um dia, também encerrou suas atividades, reclamando dos altos custos de operação.

Existe uma crise generalizada para cantinas e outras casas tradicionais, de salões e cardápios enormes?

Não há dados no setor que apontem para um número maior de fechamento de casas. Mas, historicamente, poucos restaurantes e bares perduram em São Paulo (de cada 100 abertos, 35 fecham em um ano e só 3 funcionam por mais de dez), segundo a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes).

Salões enormes pedem muitos funcionários e estoques abastados, algo difícil de administrar, de acordo com André Spínola, gerente do Sebrae. "Quando se atende um nicho, com oferta enxuta, é possível negociar melhor com o fornecedor."

Especialistas, como o presidente da Abrasel-SP, Percival Maricato, defendem que as casas devem se atualizar para manter a competitividade. "Ninguém sobrevive se não mudar sua proposta. E a das cantinas foi superada", afirma. "Algumas ficam por causa da tradição, mas precisam de boa gestão –e os herdeiros desses restaurantes familiares nem sempre têm a aptidão do pai ou do avô."

Mas as mudanças ressabiam os mais tradicionais, que temem perder os clientes antigos. "Mudar é inevitável, mas em uma empresa familiar isso é difícil, costuma ser um embate entre gerações", conta Fabio Lellis, filho do fundador da Lellis Trattoria, aberta em 1981.

Mesmo assim, há oito anos, ele decidiu, por exemplo, tirar as camisas de futebol da casa. "Só não podemos perder o lado humano da tra-ttoria e da cantina. Aqui, fazemos os pratos como os clientes pedem."

De cardápio extenso e música italiana ambiente, a Cantina do Piero, aberta em 1990, é administrada pela terceira geração da família. "A cantina não precisa de adaptação, ela é um ponto de referência", diz Piero Grandi. "Pessoas mais velhas precisam de um lugar que elas gostem."

"Até que ponto a tradição é um conceito estático?", questiona Marie-France Henry, à frente do La Casserole, aberto em 1954. "A decadência acontece quando se para no tempo. O que nossos clientes esperam de nós hoje?"

No Casserole, ela mudou as louças ("meu pai não se preocupava em ter taças para Bordeaux e Borgonha") e também receitas.

O clássico pato ao molho de laranja, por exemplo, foi repaginado: passou a ser confitado, para deixar a carne mais úmida, e o molho ficou mais leve. "Se a tradição fica estagnada, vira folclore."

Edgard Bueno da Costa, da Companhia Tradicional do Comércio (dos jovens Ici Brasserie, Bráz Pizzaria e Bráz Trattoria), afirma que a credibilidade de uma casa tradicional pode ser usada para atrair e manter clientes. "Para eles, trocar o certo pelo duvidoso em um momento de crise, em que os gastos são segurados, é difícil."

As casas ouvidas pela reportagem estão sentindo a recessão com a queda de público (estimada por eles em 20%), mas sofrem mesmo com a inflação, principalmente dos ingredientes.

"Há uma exigência do comensal no controle de preços. É um momento de afinar a conversa com os fornecedores: explicar que se mantivermos o cliente, manteremos as compras. É preciso fortalecer os elos", diz Marie-France.

Mas a crise econômica, segundo Percival Maricato, não é determinante para o fechamento de casas como o Gigetto. "Pode ser apenas a gota d'água", diz.


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