Folha de S. Paulo


crítica

'Maní' faz importante registro da moderna cozinha brasileira

Helena ia à igreja aos domingos com os avós, conservava certa inquietude sobre a vida e anotava toda sorte de pensamentos e imagens em um diário -eis a menina chorando lágrimas de gelatina. Ganhou um dinheiro fazendo bolo de maçã, limpou peixes, descascou batatas.

Daniel fritava croquetes na infância, fora expulso da escola e de uns tantos jogos de futebol. Na cozinha, aprendeu disciplina, lavou louça, descascou cebolas. Não atrasa. E é de poucas palavras.

As histórias individuais da gaúcha Helena Rizzo e do catalão Daniel Redondo estão reunidas em "Maní", a ser lançado na semana que vem pela editora DBA, com textos da jornalista Milly Lacombe, integrados com trechos de diários e grafites de Helena.

Mas o livro é, acima de tudo, uma história de amor (que virou casamento, encerrado no ano passado). Trata de um "terceiro elemento", "uma espécie de chef-combinado" que alia a "técnica dele e a capacidade criativa dela", "um chef metade homem, metade mulher".

Sai dessa narrativa, portanto, um registro do nascer e do amadurecer de um dos restaurantes mais celebrados do Brasil e, para além do Maní, um registro de uma cozinha que representa um símbolo para a gastronomia do país -pela delicadeza, pela inovação, pela precisão, pela valorização dos elementos brasileiros e seus produtores.

Soam mais preciosos os textos de introdução, que ajudam a tornar claro e transparente o trabalho que se faz no Maní (e o porquê de sua projeção dentro e fora do país), do que as receitas ali contidas, geralmente fora do alcance do leigo. Muito embora sejam úteis para levar o leitor às entranhas do processo criativo de Helena e Daniel, da exploração da técnica, do uso de ingredientes nacionais. Verbetes esclarecem ainda que produtos são esses e de onde eles vêm.

Bem, a cozinha brasileira surge no Maní como veículo de expressão, de paisagens, de emoções e ilusões, nas palavras de Joan Roca, considerado um dos melhores chefs do mundo, à frente do espanhol El Celler de Can Roca, onde Rizzo e Redondo se conheceram.

Alex Atala ressalta a simplicidade e a ausência de excessos das receitas, nas quais, para o jornalista Luiz Américo Camargo, texturas e surpresas visuais sempre estiveram subordinadas ao sabor.

SABOR, PRODUTO
Os relatos deixam explícita a busca pelo sabor e por ingredientes nacionais, muitas vezes orgânicos, vindos de sistemas autossustentáveis.

Caso do leite, dos ovos, das frutas e dos grãos fornecidos pela fazenda do sócio Pedro Paulo Diniz, na qual "o resíduo das aves aduba a pastagem das vacas, o esterco das vacas produz biofertilizantes que adubam fruteiras e os resíduos industriais das casas e dos jardins viram compostos que retornam a horta, ao pomar e a plantaçao de graos".

A ideia do capítulo "Fornecedores", inclusive, é boa: celebrar e dar visibilidade a pequenos produtores parceiros do restaurante. (E tem um apelo artístico: cria-se uma narrativa visual, por meio de fotos poéticas e intensas, que perdem força na impressão, em papel esverdeado.)

É como se o leitor pudesse estar mais próximo do expressivo nhoque de mandioquinha e tucupi ao saber que a araruta usada em seu preparo, "um amido cultivado por índios brasileiros ha 7.000 anos", vem de um sítio do interior da Bahia.

O passeio pelas histórias dessas terras e personagens, no entanto, soa breve e pouco aprofundado. Não se sabe, por exemplo, o que é cultivado na propriedade de seu Zé, um pernambucano que mantém uma espécie de laboratório em Paraty (RJ), onde não existe relógio, luz elétrica, nem cama de hóspedes.

E, bem, afora algumas imprecisões (Helena passou três ou seis meses no El Celler, afinal? O livro fala desses dois períodos) e alguns clichês que empobrecem a narrativa, tais quais "aprendiz de feiticeira", "pontapé inicial", "surfar na onda", eis uma obra que há de ajudar a contar a história da moderna cozinha brasileira.

Maní
AUTORA: MILLY LACOMBE
EDITORA: DBA
QUANTO: R$ 180 (302 PÁGINAS)
LANÇAMENTO: 16/12, ÀS 19H, NA LIVRARIA CULTURA DO SHOPPING IGUATEMI (AV. BRIG. FARIA LIMA, 2.232)


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