Folha de S. Paulo


Por praticidade, pizzarias migram para o gás e se opõem a 'mito da lenha'

Adriano Vizoni/Folhapress
SAO PAULO - SP - BRASIL, 16-11-2015, 17h20: FORNOS DE PIZZA. Forno a gas da Pizzaria Graca de Napoli, no bairro de Santana (Foto: Adriano Vizoni/Folhapress, COMIDA) ***EXCLUSIVO FSP***
Forno da pizzaria Graça di Napolli, em São Paulo

"Cozinhar com lenha é como ter um primeiro encontro. É algo que se espera com grande expectativa e um pouco de ansiedade. Nunca se sabe com certeza quais serão as condições: o dia pode estar ventoso, a lenha pode estar bem seca ou verde."

Em seu livro "Sete Fogos", o chef argentino Francis Mallmann defende a madeira da faísca à última brasa. No que se refere à pizza, hoje muita gente em São Paulo chamaria esse amor de romântico.

A cidade tem cada vez mais estabelecimentos trocando o forno a lenha pelo a gás para assar suas pizzas. A Associação Pizzarias Unidas, que reúne 115 estabelecimentos, estima que metade das casas paulistanas usa forno a gás. "Essa não é mais uma tendência, é uma realidade", diz o vice-presidente da entidade, Carlos Zoppetti.

Há quem queira maquiar essa realidade. "Algumas pizzarias disfarçam a tubulação de gás com um pouco de madeira e ainda pedem o nosso sigilo de que o forno funciona a gás", relata Roney Moreira, da Fornoflex, que constrói equipamentos híbridos, que aceitam os dois combustíveis. "Tenho que derrubar ponto a ponto o paradigma de que pizza boa é feita com lenha."

Interessada na migração, a Comgás, distribuidora de gás natural em São Paulo, fez uma campanha para incentivar a conversão do combustível e reuniu números. Segundo a empresa, de maio de 2014 até agora há pelo menos 68 novos fornos de pizza a gás no mercado. A maioria, em estabelecimentos pequenos.

Para essas casas, há vantagens claras: não ter de armazenar a madeira (e lidar com os insetos que podem vir com ela), economizar com filtros para a fumaça (por lei, devem estar nas chaminés) e poder controlar melhor a temperatura no forno.

Entre grandes pizzarias, no entanto, surgem outros pontos de vista.

"Há muito romantismo ainda. O mito da lenha vem de quando só existiam ela e o forno de padaria [mais simples]", diz Roberto Loscalzo, proprietário da Veridiana, pizzaria com três endereços na capital, que usam gás. "Não existe nada contra o forno híbrido", afirma.

O termo usado no mercado é "híbrido", mas quem faz o trabalho é o gás. Por fora, o forno é aquele familiar, feito de alvenaria, com boca arredondada. Dentro, há um bocal lateral que concentra a chama, e a madeira (podem ser apenas duas toras, no cantinho do forno) acaba servindo só para "aromatizar"o ambiente.

Segundo Moreira, qualquer que seja o combustível no forno, o importante é a "qualidade térmica": atingir e manter altas temperaturas.

"A lenha não proporciona um padrão de temperatura. É preciso medi-la o tempo todo e é difícil estabelecer exatamente quantos graus se quer", diz Tony Martin, da Graça di Napolli, que nasceu em junho de 2014, já a gás.

Com as toras, embora seja "tudo mais difícil", nas palavras de Benny Goldenberg, do Mangiare (italiano que também serve pizzas), o trabalho vale a pena. "Um dia o fogo gira para um lado, em outro gira para o outro. É mais selvagem, e isso se reflete no prato de uma forma interessante, com queimadinhos, coisas irregulares, crostas bem formadas pela alta temperatura."

Para André Guidon, da Leggera, só a madeira proporciona o calor (entre 430ºC e 450ºC) de que uma receita napolitana precisa para que a massa molhada por tomate asse rapidamente (em 60 segundos) e as bordas fiquem altas e cheias de ar.

"O calor do forno a lenha é alimentado de três formas: pela brasa em contato com o lastro [base do forno], pela chama e pelo ar quente circulando. O gás se concentra em uma parte determinada do forno, é desequilibrado. Quando a pizza, fria, entra em contato com o lastro, rouba seu calor, e a recuperação da temperatura é mais lenta."

Professor de química da USP, Cassius Stevani discorda. Diz que o gás reage bem mais rapidamente que a madeira, com combustão completa e que essa chama é mais estável e homogênea. "Tudo depende de como o forno é fabricado e do cozinheiro."

DEFUMADO

O debate reacende quando se fala do sabor defumado. Se para os defensores do gás isso é besteira –porque a pizza fica tão pouco tempo no forno que não chegaria a ser defumada–, para os afeitos à lenha, isso é o que justifica o trabalho adicional que se tem com ela.

"Até o salão fica com o cheiro gostoso da lenha queimada. É como dizer que churrasco em grelha elétrica é igual ao com carvão", afirma o colunista da Folha Josimar Melo.
Por essa razão, os sócios da Bráz fizeram testes cegos internos com a receita preparada em cada forno. Decidiram manter o combustível tradicional. "O sabor que a lenha dá é mais complexo, com mais nuances, além do efeito das chamas que gratinam a cobertura", diz o sócio André Lima.

A Carlos Pizza, aberta neste ano, também analisou o assunto antes de optar pelo forno a lenha (no qual prepara também os tomates do molho e até sobremesas). "Não tivemos um resultado satisfatório com o gás", diz o proprietário, Carlos Verna.

"É algo sutil, como em um vinho que fica seis meses em barril de carvalho e outro que fica oito. São poucos os que sentem a diferença, mas queremos atingir esses poucos."

DEBATE QUENTE
Veja os argumentos

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forno de pizza -Fogo Foto: fotolia ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***

GÁS
> não é preciso armazenar a lenha no estabelecimento, liberando espaço e evitando
a presença de insetos

> a chama do gás é facilmente regulável, o que pode gerar um controle mais eficiente
da temperatura

> economiza-se com a manutenção do filtro de fumaça (exigido por lei) e do forno (com o tempo, o choque da madeira com a base do forno causa danos)

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Burning Wood Logs in a Vintage Brick Fireplace. Foto: fotolia ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***

LENHA
> o calor é alimentado de diferentes formas, pela chama, pela brasa e pelo ar quente, e por isso a temperatura se restabelece mais rapidamente

> o sabor da pizza é diferente, mais complexo, com aromas de defumação no forno

> o calor "selvagem" da lenha dá queimadinhos irregulares na pizza que deixam o sabor com mais nuances

CASAS CITADAS NA REPORTAGEM

GRAÇA DI NAPOLLI (gás)
ONDE r. Dr. César, 704, Santana; tel. (11) 3477-2030

VERIDIANA (gás)
ONDE r. Da. Veridiana, 661, Higienópolis; tel. (11) 3120-5050 (mais dois endereços)

LEGGERA (lenha)
ONDE r. Diana, 80, Perdizes; tel. (11) 3862-2581

MANGIARE GASTRONOMIA (lenha)
ONDE av. Imperatriz Leopoldina, 681, Vila Leopoldina; tel. (11) 3034-5074

BRÁZ (lenha)
ONDE r. Sergipe, 406, Consolação; tel. (11) 3214-3337 (mais três endereços)

CARLOS PIZZA (lenha)
ONDE r. Harmonia, 501, Vila Madalena; tel. (11) 3813-2017


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