Folha de S. Paulo


Produtora de vinho 'intragável', China quer fazer bebida de grife

Amanda Kho/The New York Times
Vista do vinhedo a partir do Chataeu Moser, em Ningxia, na China)
Vista do vinhedo a partir do Chataeu Moser, em Ningxia, na China

Em uma sala de aula iluminada por lâmpadas fluorescentes na Universidade Tsinghua, em Pequim, uma dúzia de universitários escutava atentamente as palavras da palestrante, algumas noites atrás.

Emma Gao tinha em suas mãos uma taça, e a segurava contra a luz pedindo que os presentes contemplassem o líquido que a ocupava. A Tsinghua é conhecida como "MIT [Instituto de Tecnologia de Massachussets] chinês", mas o momento não era parte de um seminário para calouros sobre a mecânica dos fluidos. O encontro na verdade era uma reunião do clube do vinho da instituição.

Gao, uma mulher pequenina e de sorriso fácil, estava conduzindo uma degustação das safras mais recentes da vinícola de sua família em Ningxia, uma remota região chinesa no limite do deserto de Gobi. Acomodados em torno de mesas que mostravam fileiras de taças, os universitários provavam os vinhos, comparando um tinto frutado a um vinho em estilo mais semelhante ao francês, de paladar rico e com um toque de carvalho.

Desde que sua vinícola começou a conquistar sucesso internacional, Gao, 38, emergiu como a improvável estrela de uma nova indústria chinesa ainda mais improvável. A vinícola, Silver Heights, é pioneira na China, e levou sofisticadas técnicas ocidentais a um setor que antes se concentrava na produção em massa.

Inspirada pelo modelo das pequenas vinícolas de grife, a região de Ningxia tem a ambição de se tornar o equivalente chinês do Napa Valley norte-americano. Os vinicultores locais conquistaram prêmios prestigiosos e há planos em curso para dobrar a área dos vinhedos da região e criar um polo de turismo vinícola. Investidores estrangeiros já detectaram a tendência. A Moët & Chandon, casa vinícola francesa especializada em vinhos espumantes, produz na região, enquanto a gigante das bebidas alcoólicas Pernod Richard está investindo pesadamente para modernizar sua vinícola local.

Amanda Kho/The New York Times
Emma Gao, a estrela da indústria do vinho da China
Emma Gao, a estrela da indústria do vinho da China

Auxiliada pelo mesmo planejamento de longo prazo e apoio governamental que gerou sucesso em toda espécie de atividade, dos produtos têxteis aos eletrônicos de alto preço, a China produziu 120 milhões de caixas de vinho em 2014. Isso equivale a pouco menos de um terço da produção dos Estados Unidos e fica pouco abaixo do total de potências exportadoras como Argentina e Austrália.

Mas o vinho chinês é produzido quase exclusivamente para o mercado doméstico, diz Ma Huiqin, professor na Universidade Agrícola da China em Pequim e colaborador estreito dos produtores de vinho em Ningxia. E até recentemente, a maior parte dos produtos do país, oferecidos por grandes vinícolas industriais, era vista como quase intragável, pelos padrões ocidentais.

Agora, uma nova geração de vinicultores chineses está tentando melhorar a qualidade de seu produto, em um esforço para conquistar os consumidores locais de vinho à medida que eles desenvolvem seus palatos, e capturar os conhecedores locais que consomem principalmente vinhos importados da França, Estados Unidos e outros países. E o objetivo final, como no caso de muitas outras indústrias chinesas, é criar um mercado de exportação para os produtos mais bem-sucedidos.

"Eles têm todo o dinheiro do mundo, eles têm toda a ambição do mundo, e contrataram os melhores consultores", disse Steven Spurrier, comerciante britânico de vinho que organizou o "Julgamento de Paris", a degustação cega realizada em 1976 que causou espanto ao mundo quando vinhos californianos derrotaram os vinhos franceses. "É inevitável que os chineses venham a produzir vinhos cada vez melhores."

UMA DISPARADA SÚBITA

Sentada no pátio da rústica sede da vinícola de sua família perto de Yinchuan, a capital da região de Ningxia, Gao, da Silver Heights, estava contemplando os vinhedos plantados por seu pai quase 20 anos atrás. Entre os primeiros a plantar uvas no local, ele sugeriu à filha que viajasse à França para estudar a produção de vinhos, em 1999. "Eu tinha 21 anos, e disse que claro que gostaria de ir", ela conta. "Mas o que me interessava era a França, não a produção de vinho."

Depois de conquistar seu diploma em enologia, ela trabalhou por algum tempo no prestigioso Château Calon-Ségur, onde conheceu o enólogo responsável pela criação dos vinhos da casa, com quem mais tarde se casaria. As atitudes francesas lhe causaram impressão profunda. "Aprendi a me concentrar na qualidade, a produzir o melhor vinho possível com o material que você tiver."

Depois que Gao retornou à China, a primeira safra produzida por ela e o pai em 2007 rendeu apenas 10 barris, ou 3.000 garrafas. Hoje, Gao produz quatro vinhos, com produção anual total de 60 mil garrafas. Uma garrafa da safra 2013 de seu vinho Summit custa cerca de US$ 75.

"Ela é considerada a melhor vinicultora, e produz praticamente o melhor vinho, de toda a China", diz Gérard Colin, consultor francês que ajudou a Château Lafite Rothschild a desenvolver uma vinícola na China. "Emma colocou Ningxia no mapa".

Uma pobre região carvoeira localizada no limite da província da Mongólia Interior, Ningxia, com suas terras áridas e de relevo acentuado, não é uma região ideal para a agricultura. É seca e quente no verão, e os invernos são longos e gélidos. Mas o solo arenoso e rochoso se provou ideal para o cultivo da uva. As montanhas Helan, a oeste, protegem os vinhedos contra os ásperos ventos do deserto, enquanto as noites gélidas impedem que as uvas amadureçam rápido demais.

Ávido por criar um novo setor econômico, o governo local construiu extensos sistemas de irrigação, a partir do final dos anos 1990, e colocou a produção de vinhos em posição central nos seus planos de desenvolvimento. Em 2005, o governo ajudou na criação na primeira vinícola de "demonstração" em Ningxia, a Helan Qingxue.

Um ponto importante de inflexão veio em 2011, quando a Helan Qingxue conquistou a medalha de ouro em uma prestigiosa competição internacional promovida pela "Decanter", uma revista britânica de vinho. Ema garrafa da safra 2009 de seu tinto Jia Bei Lan foi selecionada como melhor varietal Bordeaux tinto na categoria de preço superior a 10 libras, superando rivais do Napa Valley, Austrália e Bordeaux.

Subitamente, o que vinha sendo um lento avanço se tornou disparada. O prêmio "levou as pessoas a compreenderem que o vinho poderia ser um grande negócio", disse Guo Xiaoheng, natural da região, que estudou na França para ser sommelier e depois voltou a Ningxia para vender equipamento de produção de vinhos. A demanda pelos vinhos da região –e seus preços– começaram a decolar.

Uma década atrás, havia apenas um punhado de vinícolas em Ningxia. Hoje, são mais de 70, e há outras 40 em construção; os planos do governo são de que o total atinja as 200 em 2020. Como em outras partes da China, os vinhos tintos dominam, especialmente as misturas Bordeaux –com uvas cabernet sauvignon, merlot e cabernet franc–, muito populares no país.

Jancis Robinson, jornalista britânica de vinhos, foi jurada de uma degustação de vinhos chineses em Xangai no ano passado. "Ningxia realmente brilhou. Eles produziram todos os melhores vinhos", afirmou. Os produtos da região agora são "vinhos de qualidade comercial muito aceitável".

A crescente reputação de Ningxia atraiu investimentos, dado o interesse de empresas nacionais e internacionais no mercado da China. As vinícolas da região produziram 270 milhões de garrafas em 2014, quase três vezes o nível registrado três anos antes.

O boom resultante mudou a cara de Yinchuan. Sinais de prosperidade são visíveis em toda a cidade, do Kempinski Hotel, de cinco estrelas, às torres de escritórios e complexos de apartamento que se espalham por todos os bairros. No subúrbio, um fluxo constante de caminhões e tratores percorrem as estradas de duas vias, tortuosas e repletas de buracos. Uma nova rodovia que permitirá acesso mais rápido dos visitantes às vinícolas está em construção.

A Changyu Pioneer Wine, maior produtora nacional de vinho da China –e uma das três gigantes que dominam o mercado– gastou mais de US$ 100 milhões criando um "Chateau" de quase 13 mil metros quadrados, em estilo Disney, contendo fontes, torres e duas armaduras medievais flanqueando os portões.

Operado em parceria com a vinícola austríaca Lenz Moser, ele é o mais recente dos seis castelos construídos pela Changyu em toda a China para atrair os chineses de classe média que começaram a desfrutar de férias ao estilo ocidental. O diretor geral, Ruan Shi-Li, diz aguardar 80 mil visitantes este ano, mais que o dobro do primeiro ano.

Mas há quem esteja começando a se preocupar sobre a sustentabilidade desse ritmo frenético de crescimento, já que a riqueza recentemente descoberta provocou uma corrida imobiliária especulativa. Chen Deqi estava entre os primeiros investidores de Ningxia, adquirindo 10 mil hectares de terras em 2007. Agora ele está dividindo as terras em 100 lotes para criar "mini-chateaus" para os endinheirados.

Chen diz que ele já tem compradores dispostos a pagar um milhão de yuan –cerca de US$ 160 mil– pelos dois primeiros lotes. Ele diz que as terras hoje valem 20 vezes mais do que pagou por elas.

Há também quem se preocupe com a possibilidade de uma perda de qualidade. Xie Donjiang, natural de Ningxia, desenvolveu uma propriedade vinícola ao sul de Pequim e também é dono da vinícola Ektimo, em Sebastopol, Califórnia, conta que voltou a Ningxia para ver como andavam as coisas, no final do ano passado. E se decepcionou.

Ele argumenta que as autoridades de Ningxia autorizaram o plantio aleatório de uvas, sem compreender que varietais se adaptam melhor ao terroir –a combinação de terra, exposição e clima que torna cada vinhedo único.

"Ningxia está forçando demais", disse Xie. "Essa é uma análise básica para o vinho, e o governo não a está fazendo."

CRIANDO CONNAISSEURS

Zhou Jianyu é empresário em Hunan. Como muitos chineses mais jovens, Zhou adquiriu gosto por vinho quando estudou no exterior. Inicialmente, preferia os vinhos europeus –franceses e italianos acima de tudo. Mas há três anos começou a beber apenas vinhos chineses. "Eles eram excelentes e por isso comecei a beber mais", ele disse.

Em uma visita à Legacy Peak, uma das melhores das novas vinícolas de Ningxia, Zhou e seus amigos almoçaram peixe, caranguejo, frango e legumes. Enquanto comiam, Zhou Shu Zhen, o vinicultor, discutia o clima local e explicava como o envelhecimento mais longo em barril acrescentava profundidade aos seus tintos.

"Para muita gente, os vinhos da Califórnia ou França têm sabores próprios", disse Zhou Jianyu, que não é parente do vinicultor. "Mas descobri que os vinhos de Ningxia também têm sabor e caráter próprios".

À medida que Ningxia corre para se expandir, cultivar consumidores como Zhou será crítico. Boa parte da explosão no consumo de vinho foi propelida por funcionários do governo e executivos de estatais que adquiriam safras caras para banquetes e como presentes.

Nos dois últimos anos, o governo da China está envolvido em uma feroz campanha contra a corrupção, e uma das consequências foi uma queda de 12% no consumo de vinho tinto em 2014. O colapso do mercado de ações e a desaceleração da economia este ano não estão ajudando.

A reacomodação está forçando as vinícolas a se concentrarem em "compradores reais", diz Fongyee Walker, diretor executivo da Dragon Phoenix, uma consultoria de educação sobre o vinho sediada em Pequim. Ele está falando dos chineses de classe média e alta que bebem vinho porque gostam, e não por causa do status ou favores que isso lhes confira.

Muita gente também prevê o momento em que grandes vinhos chineses serão presença comum nas prateleiras de lojas europeias ou dos Estados Unidos.

Mike Insley, neozelandês que chegou recentemente para melhorar a qualidade dos vinhedos da Pernod Ricard, diz que a área o faz recordar Marlborough –o centro da indústria do vinho em seu país– no final dos anos 1980. Então, os vinhos da Nova Zelândia não tinham reconhecimento internacional, e os vinicultores do país mal estavam começando a compreender os vinhos que produziam.

Hoje, vinho é a sexta maior exportação da Nova Zelândia, com mais de US$ 940 milhões em vendas anuais. "Isso é o que acontece quando um país faz a coisa do jeito certo", disse Insley.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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