Folha de S. Paulo


Refugiado sírio cria financiamento coletivo para abrir food truck

O relógio mal bate 10h e centenas de mãos frenéticas empunham sacolas pelas calçadas e galerias do Brás, famoso bairro de compras em São Paulo. Perto dali, num apartamento do número 295 da rua Hipódromo, as mãos de Talil Al-Tiwani, 42, também não param, concentradas na preparação de massas de pão e em levar esfihas ao forno.

O refugiado sírio, que mora no Brasil desde 2013, precisa finalizar uma porção dos salgados até a hora do almoço para entregar um pedido. Engenheiro mecânico, Talal deixou sua profissão de lado ao chegar ao Brasil, onde agora prepara comidas típicas de seu país para tentar pagar o aluguel de seu apartamento de dois quartos na região central.

No início, eram dois ou três pedidos por mês. Depois de criar uma página no Facebook para divulgar o cardápio, ficar conhecido e dar entrevistas, ele viu a demanda saltar para três ou quatro pedidos por dia. Ainda é pouco. Para impulsionar as vendas, criou uma campanha de financiamento coletivo no Kickante que já juntou mais de R$ 35 mil. No início, a ideia era abrir um restaurante. Agora, pretende criar um food truck especializado em falafel e kibe. Até o próximo dia 21, ele espera reunir R$ 60 mil.

Em Damasco, sua cidade natal e capital da Síria, Talal nunca havia cozinhado –atividade que ficava a cargo de sua mulher, Ghazal. Ele trabalhava como engenheiro no país até estourar a guerra civil, que já matou mais de 200 mil pessoas, e ser preso após ter sido confundido com uma pessoa de mesmo nome. "Damasco ainda é segura, se comparar com outras cidades sírias. Lá só explodem 25 ou 30 bombas por dia. É pouco", diz.

Mas suficiente para fazê-lo deixar o país com a mulher e os dois filhos, que hoje têm 10 e 13 anos, em direção ao Líbano, onde tentou sem sucesso conseguir vistos para países da Europa. Uma coincidência acabou levando-os ao Brasil. Em setembro de 2013, uma resolução do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) tornou mais fácil a obtenção de vistos para que sírios se mudassem para o país.

Na embaixada brasileira em Beirute, Talal ligou para a mesquita do Brás, avisou que iria a São Paulo com a família e comprou as passagens. Dias depois, um membro da Associação Religiosa Beneficente Islâmica do Brasil os esperava no aeroporto de Cumbica.

"Como não queria deixar minha família para trás, precisava escolher um país que desse vistos para todos. Por isso o Brasil", contou Talal, sentado na sala de sua casa, cuja janela dá para o pátio de uma garagem de ônibus municipais.

Não é o caminho que muitos sírios escolhem. Mais de 4 milhões de pessoas já deixaram o país desde 2011, sendo que grande parcela deles parte rumo à Europa, principalmente à Alemanha, sem garantias de acolhimento diplomático. As condições precárias da viagem geram cenas como a do menino Aylan, 3, que morreu afogado após o bote em que estava com sua família naufragar na travessia entre a Turquia e a Grécia.

HOMUS E BABAGANOUSH

O cardápio de Talal vai dos clássicos homus e babaganoush (a R$ 25 o quilo cada um) a pratos menos comuns para o paladar nacional, como hira bisbaou (com lentilhas e melaço de romã; R$ 15) e fassolieh bzit (feijão verde preparado com coentro e outros temperos; R$ 15). Tudo preparado por ele, Ghazal e seu filho mais velho, Riad. Enquanto o food truck não existe, a comida só é vendida pelo telefone e precisa ser buscada no apartamento do Brás.

Algumas receitas típicas, porém, precisaram ser adaptadas ao gosto brasileiro. "Os sírios gostam de muito tempero na esfiha de queijo, por exemplo. Como os brasileiros não gostam, tivemos que tirar", diz.

Enquanto falava, um quadro com uma foto de Meca, cidade sagrada para o islamismo, dividia a mesma parede com um boneco do Cascão, da Turma da Mônica. A mistura com o Brasil chegou até ao DNA. Sarah, de sete meses, é a terceira filha de Talal e a primeira brasileira da família.

O interfone toca. É a cliente que veio buscar as esfihas. Talal desce os três andares de elevador com os salgados em um recipiente de isopor. Ao voltar, traz um pacote com roupas e fraldas que coloca junto a uma pilha de sacolas e sacos plásticos que toma mais da metade de sua sala. São doações que ele recebe para sírios que moram no Brasil. Segundo o Conare, há 2.077 refugiados sírios no país –cerca de 25% de todos os 8.400 refugiados.

Entre ligações e mensagens no Facebook e no WhatsApp, ele diz receber mais de 500 contatos por dia perguntando como ajudar os refugiados e oferecendo desde calçados e itens de higiene a comidas e brinquedos. "Na semana que vem, vou postar no meu Facebook uma mensagem chamando os sírios a virem buscar essas coisas."

Ele e a família não vão ficar com nada. Agradecem à vida no Brasil, que ainda não é confortável, mas é melhor que a de muitos conterrâneos. "É uma pena o que está acontecendo na Síria. Antes da guerra, lá era o melhor país do mundo. Mas só voltarei a meu país a passeio. Não que não goste de Damasco, mas já tive que começar minha vida do zero três vezes. Não posso passar por isso mais uma vez", conta sobre a cidade onde deixou o pai e o irmão.


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