Folha de S. Paulo


"A cozinha é machista", diz melhor chef mulher da América Latina

Roberta Sudbrack, 46, aprendeu a cozinhar com os livros de Carême em francês, "embora eu nem falasse francês [risos]". Carême foi um dos mais relevantes cozinheiros franceses do século 19, conhecido como "o rei dos cozinheiros e o cozinheiro dos reis".

Agora, completa 20 anos de carreira, depois de sete a cozinhar no Palácio da Alvorada para o então presidente Fernando Henrique Cardoso, para chefes de Estado do mundo todo, para príncipes e princesas.

Também comemora os dez anos de seu restaurante carioca que leva o seu nome, no Jardim Botânico, no Rio, e o prêmio de melhor chef mulher da América Latina pelo 50 Best, promovido pela revista inglesa "Restaurant". Confira entrevista.

Folha - Qual era o futuro, há dez anos, quando você abriu seu restaurante?
Roberta Sudbrack - Sou muito artesã, muito chata. Falo que a gente costura bainhas à mão todas as noites aqui, nosso "mise en place" muda todos os dias –e começa na roça. A gente fez isso há dez anos. E há dez anos isso era muito ousado. Hoje em dia, acho lindo que a tendência seja essa, e fico feliz que seja, mas acho engraçado isso parecer novo. Quando eu mesma fiz, já havia me inspirado em algo que tinha visto lá fora. E há dez anos, no Rio de Janeiro, foi um desafio: propor um menu que mudava todo dia, e ter sido o primeiro restaurante de alta gastronomia a servir só menu-degustação. Tomamos muita paulada, foi difícil, mas hoje, abrir qualquer cardápio e ler ali estampado "qui-a-bo", "chu-chu" É um orgulho! Penso, 'pô, passei a mensagem'.

E qual é o futuro, hoje?
Menus curtos e que mudam todos os dias. A gente tem de ouvir a natureza, se a gente não ouve, não faz sentido se aproximar do produtor, se preocupar com a qualidade dos ingredientes, com a sazonalidade. Quem faz o menu aqui não sou eu, é o mar, é o pescador, é a natureza. É a partir do que eles nos oferecem que a gente se movimenta. E precisamos prestar atenção no que estamos fazendo para fazer um trabalho consistente.

Tão primitivo, né?
Quem não lembra do cheiro do forno a lenha, da roça? Não existe a nova cozinha brasileira. Trata-se da moderna cozinha brasileira. Isso é justamente trazer a cozinha para os dias de hoje, em uma linguagem mais relacionada aos dias de hoje, mas sem abandonar as raízes.

Inteligência x afeto. No que você pensa?
É muito importante que a gente pense, reflita sobre o que fazer, usar a inteligência para pensar na nossa proposta para aquele prato, mas nunca se desconectar do afeto. A cozinha brasileira é afetiva, é quintal, fogão a lenha, roça. Mas não tenho nenhum problema com a modernidade. Minha cozinha, na verdade, é superousada, moderna. E o boom da cozinha espanhola foi ótimo, mesmo sendo algo oposto ao que acredito. Foi ótima porque nos fez parar para pensar. O que estamos fazendo?

Pode parecer loucura, mas identifico uma relação intensa da sua cozinha com a do [Ferran] Adrià...
Sim, a ousadia. Por caminhos completamente diferentes, mas em busca da ousadia. Não tenho nada a ver com a tecnologia. A cozinha moderna que eu faço é muito artesanal, feita à mão.

Ausência de tecnologia não quer dizer algo retrógrado, portanto.
De jeito nenhum. Quero mostrar justamente isso, que eu faço uma cozinha moderníssima, só com a inteligência, as mãos e os ingredientes. A tecnologia é só um caminho, e eu respeito. Não quer dizer que eu gosto, mas isso eu posso me dar o direito. Não é uma textura que me agrada, um sabor que me agrada, mas eu respeito profundamente. E, bem usado, pode chegar a resultados ótimos. Sempre cito o exemplo do Rodrigo Oliveira [do restaurante Mocotó, em São Paulo]. Ele humanizou o processo do cozimento do sous vide quando colocou manteiga de garrafa. Ele fez um processo muito moderno, que é contra tudo o que eu acredito, mas quando colocou manteiga de garrafa ele humaniza aquele processo frio. Aquela coisa do saco, da carne, da água. Por quê? porque ele usou a inteligência e ele usou o afetivo. Ele lembrou de um sabor.

Você estuda cada ingrediente que elege como objeto por um ano?
Um ano. Ficamos focados em um ingrediente. Minha maior inspiração são cozinheiras de forno e fogão. Minha frase de ponto de partida para as minhas pesquisa é: "Mas como é que você faz isso?". Parto desse fazer muito simples para algo que vá passar uma mensagem mais conectada com o nosso presente, com a linguagem da nossa gastronomia, mas sem desconectar das raízes.

E o que é essa linguagem do presente?
Uma linguagem moderna, que pode ser universal, da gastronomia, do mundo. Eu, particularmente, tenho uma ligação muito forte com a cozinha do dia a dia, a essência dos sabores, os afetos. Não uso marinada, porque eu gosto do sabor, a essência pra mim é uma coisa fundamental. A escolha pelos ingredientes simples [jaca, milho, quiabo, repolho, banana] também tem a ver com essa simplicidade e com essa dificuldade. É muito complicado pensar que há dez anos eu coloquei quiabo em uma cozinha de alta gastronomia.

Em que pé está a alta gastronomia no Brasil, aliás?
Está engatinhando ainda, mesmo com tudo que já conquistamos. Por quê? Porque temos muito a evoluir ainda. Penso assim para a minha cozinha e também para a cozinha brasileira. Não interessa o quanto já conquistamos, temos sempre de querer chegar a um outro lugar, onde a gente se sinta fazendo algo novo, que renove. O trabalho na cozinha é muito massacrante. Precisamos ter esse viço, essa gana.

Por falar em massacrante, e essa história de que mulher não suporta o "pesado trabalho na cozinha"?
A cozinha é machista, infelizmente. Existe um ditado popular, totalmente pejorativo, que diz que lugar de mulher é na cozinha. Aí, quando a mulher resolve ocupar esse lugar literalmente na cozinha, ela não pertence àquele ambiente. A questão do calor, das horas, da pressão é bobagem. Vou te dar um exemplo muito simples: uma panela com 30 litros de caldo, um homem não pega sozinho. Assim como a gente. No mais, é a inteligência, a capacidade de gerenciar, de suportar pressão, cansaço, e um ambiente que é desafiador. E a mulher tem isso no sangue, a mulher dá à luz. Suportar dor? Poxa, suportar pressão? Isso é machista, é uma ignorância.

Escoffier [o chef que sistematizou a cozinha francesa] dizia que os homens são mais atentos aos detalhes.
Uma grande bobagem. E também esse termo "cozinha feminina". Ainda mais na cozinha moderna. A cozinha moderna é delicada, é sensível, é detalhista. Não importa se é um homem ou uma mulher. A comida passa identidade, filosofia. Não existe a cozinha feminina. Eu gostaria de saber como é uma cozinha muito masculina? [risos].

Mas o que você acha sobre o 50 Best, para além do machismo dessa espécie de prêmio-cota?
Acho que não teria cabimento quem ganha pensar que aquilo tem a ver consigo próprio, Tem a ver com a gastronomia brasileira, com o momento do país. Isso é um prêmio para o Brasil. Mas eu sempre uso uma filosofia de botequim que é: o jornal de hoje embrulha o peixe de amanhã.

E o "Michelin"?
Teve um monte de reclamação, que isso ou aquilo não foi justo. Por mais que eu não consiga me pautar ou sofrer por prêmios, acho que foi importante o "Michelin" vir para o Brasil por um motivo: na América Latina inteira, ele veio primeiro para cá. Isso é sinal de que tem um trabalho consistente aqui. Eu vivo batendo nesta tecla. Existem não só os chefs que têm repercussão, mas grandes cozinheiros espalhados pelo Brasil afora, que usam ingredientes de altíssima qualidade. E a gente não se dá conta de que isso tem a ver com todo o contexto da gastronomia brasileira.

Qual é esse contexto?
A cozinha brasileira está vivendo uma tranquilidade porque ela tem consistência, substância. A gente não precisa criar um fato, ser exótico, a comida brasileira é rica porque ela tem expressões das mais diferentes e das mais fortes de Norte a Sul, que passam mensagens diferentes do que se vê no mundo. Todas as cozinhas queriam ter essa força.

E a cozinha vanguardista espanhola?
O grande barato da cozinha espanhola, que não é a minha praia, é que fez a gente pensar. Tiro o meu chapéu.

Na sua cozinha, sinto, não há uma briga entre tradição e modernidade, como na cozinha de Santi Santamaria [chef espanhol maior rival de Ferran Adrià]. Há uma convivência. Faz sentido?
Minha grande inspiração foi a cozinha de Santi Santamaria [risos].

E a ironia da "baixa temperatura caseira"?
Faço assados à moda antiga. A minha avó, a sua avó faziam isso, e sempre fizeram o controle humano. É o ser humano que controla aquele cozimento para que não perca umidade, volume, que controla daquela maneira caseira o vapor que circula ali. É a simulação de um cozimento moderno, mas com humanidade. Meu cozinheiro tem de tocar na comida. E o que ele [esse cozimento] tem o que a favor dele? Caramelização, sabor. E tem uma relação com o afetivo. A gente procura, mesmo, nos conectar com essas lembranças, esses afetos. Nem todas as cozinhas do mundo são afetivas. Mas acho que as mais bonitas são.

Como tem sido usar a grelha que Francis Mallmann [chef argentino conhecido como o rei do fogo] te deu?
Temos usado exaustivamente a grelha, a brasa. Estamos tentando até hoje entender e dominar o fogo. E a gente sabe que nunca vai conseguir. Mas a gente tenta [risos].

Você se diz uma chef "atormentada, inquieta e com desassossego permanente".
O cozinheiro precisa disso, se ele se acomoda, perde isso e acha que fez algo perfeito. Perde a graça, a cozinha fica triste. Porque tem isso, a cozinha pode ser uma coisa mecânica, feita por máquinas. Isso é triste. A gente está lidando com seres humanos, com vida, com ingredientes.

E sua máxima "está quase perfeito" [risos]?
A cozinha é difícil, é massacrante, ela precisa ser alegre, divertida. Essa é uma profissão que pede do seu físico, do seu mental, do seu espiritual. Tem vezes que você faz tudo certo, mas você está lidando com ser humano e você não pode ter a pretensão de achar que todos os dias você vai emocionar ou tocar as pessoas É muito importante para mim que a pessoa saia daqui me amando ou me odiando. Os dois valem. De alguma maneira eu te toquei.

E o novo Da Roberta, que você vai abrir no Leblon?
O Da Roberta tem a ver com a historia de vida. É uma maneira de canalizar a minha energia e essa minha capacidade de me expressar de outras maneiras, além da alta gastronomia. Estou muito envolvida com a comida de rua, viajei o mundo inteiro para entender sobre isso. O Da Roberta [sem mesas e sem cadeiras, numa antiga borracharia] está ligado a tudo aquilo que eu acredito, apesar de ser uma expressão mais simples ainda. Ele está ligado à qualidade do produto, ao contato com fornecedores, ao consumo sustentável.

E essa relação com a sua história de vida?
Parece um conto de fadas, não parece? A menina que vendia cachorro-quente na rua, foi chef do Presidente da República, cozinhou para todos os chefes de Estado, príncipes e princesas, tem um restaurante premiadíssimo, agora ganha esse prêmio. Não foi nada de conto de fadas. Foi uma coisa horrorosa. Fui vender cachorro-quente para atar as contas, para sustentar minha avó. Eu era uma menina, foi doloroso no corpo, inclusive. Eu carregada engradados de Coca-Cola de garrafa. Naquela época era garrafa de vidro. Minha coluna até hoje grita. Não foi agradável, mas fez parte da minha historia. Tive de parar meus planos naquele momento, planos de estudar, de viajar, para pagar o aluguel, para comprar comida para casa. A gente teve questões difíceis, não vou te dizer que passamos fome, mas de passar por muita dificuldade.. Sem transformar em drama, mas isso aconteceu, mesmo. Eu poderia ter horror de cachorro-quente, mas aprendi com a própria vida e a dar valor a qualquer coisa. É como eu faço com a cozinha, qualquer coisa é importante para mim em um ingrediente.

E por que ingredientes tão simples? Quiabo, chuchu, jaca...
A simplicidade é muito importante para mim. E usar ingredientes enjaulados é coerente com a nossa história.

Outras marcas da sua cozinha?
Dou muita atenção a duas coisas nas minhas pesquisas: ao erro e ao gesto de jogar fora. Minha criação está muito ligada ao erro porque eu lido com a humanidade. E se isso pode nos trazer expressões tão bacanas por que a gente vai largar isso?


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