Comer, defende o autor e ativista gastronômico norte-americano Michael Pollan, é um ato social. É mesmo?
A questão rondava a cabeça da designer holandesa Marina van Goor, que achava que a socialização em torno da comida havia se banalizado.
Ela levou então a questão para seu escritório de design, especializado em encontrar novos formatos e modelos para produtos comuns, como pode ser um restaurante.
O resultado se materializou no Eenmaal, que reivindica ser a primeira rede de restaurantes com mesas apenas para uma pessoa.
A casa abriu suas portas em meados do ano passado em Amsterdã no formato "pop-up" –locais abertos apenas um determinado período de tempo–e já passou pela Antuérpia, Nova York, Londres e irá à China e ao Japão.
A Folha visitou a pop-up da capital holandesa em sua última abertura, no fim de novembro. E descobriu que a experiência pode acabar sendo mais social do que se imagina.
Aliás, embora o lema da rede seja "chegar sozinho, sentar-se sozinho e comer sozinho", não há nada ali contra a socialização, segundo frisou Marina van Goor.
"Sair para comer sozinho é visto hoje como algo estranho e constrangedor, especialmente no jantar, que é a máxima experiência social por excelência", disse. "Há uma overdose social. Temos que estar rodeados de pessoas o tempo inteiro hiperconectados, então queremos mostrar que não há problema em sair para comer sozinho."
A reportagem e mais cerca de 30 de comensais foram os convidados para provar o primeiro menu da sexta edição do pop-up em Amsterdã, montado por três dias em um estúdio de trabalho no Herengracth, um dos canais mais badalados da capital holandesa.
O cardápio do restaurante é único: um menu simples e sem firulas (embora com toques de humor) e composto por entrada, prato principal, sobremesa e bebida a um preço fixo de ¬ 35 (cerca de R$ 130).
Atravessada a galeria de arte situada no primeiro andar do local, chega-se ao restaurante em si, que é na verdade uma série de micro-mesas acessíveis apenas pelas escadas finas e ingrimes típicas das casas do centro de Amsterdã.
Sentados, os comensais iniciavam suas experiências individuais.
A maioria deles olhava a vista do canal pela janela enquanto devorava, literalmente, o cardápio, escrito em um papel comestível com queijo holandês curado e ralado em cima.
No segundo andar, um cliente registrava tudo com uma câmera GoPro posicionada atrás de si mesmo. Mais um lance de escada e uma surpresa: duas pessoas conversavam. Mas o papo durou menos de 5 minutos, e ambos logo voltaram a seus universos particulares, objetivo do almoço: ele compenetrado no prato, ela variando a vista entre um livro e a janela.
Para evitar que os comensais desviem a atenção de si mesmos, toda a proposta do restaurante, menu incluído, é simples e limpa –exceto pela falta de guardanapo, estrategicamente ausente, para, segundo van Goor, não "sujar" o conceito minimalista das mesas.
A casa também não serve pão, sem o qual europeus não costumam passar uma refeição.
Sobre uma mesa preta e quadrada de pouco mais de 40 centímetros de largura, o suficiente para encaixar as pernas, havia apenas um garfo e uma faca, uma taça de vinho, nenhum guardanapo e um prato com um desenho de brochete de linguiças, com o menu comestível e um bloody mary.
Menu e drinque devorados, garçonetes despojadas traziam o primeiro prato: homus com quinua, cenoura glaceada, beterraba e cebola com flores comestíveis e arroz selvagem canadense em um formato que propositalmente lembrava o de minhocas.
"Nossa ideia é conectar completamente os clientes com a comida, e para isso tentamos atiçar a curiosidade deles com essas pequenas brincadeiras", explicou a chef Emmy Ronken, responsável pelo menu.
Entre um prato e outro, outros dois comensais também trocam palavras, ainda que cordiais.
"É a primeira vez que você vem?", perguntou um deles. "Sim, aproveite seu almoço", respondeu a outra.
Ao final da refeição, no entanto, os dois acabaram em um bate-papo em um dos sofás da casa, mas aprovaram a experiência.
"É como uma meditação", definiu o chef holandês Aaron Van Henegowven, que pensa em abrir o próprio restaurante também com mesas apenas para um. "Sua atenção é toda para você e para a comida, não é preciso falar nem ouvir nada".
O serviço, também propositalmente, é bem informal e, pasme, social. Batucando talheres na mão, garçons de tênis batiam papo com comensais, desde que estes buscassem a conversa.
A decoração, a cargo da galeria de arte do espaço, era composta por armários pequenos com chaves gigantes, tapetes, o nome do restaurante projetado na parede e um quadro de arte urbana. Duas poltronas com revistas davam apoio às micro-mesas. Entre um prato e outro, alguns clientes sentaram-se nelas para ler.
O peixe, prato principal, veio com a pele dourada, mas com um cozimento leve. Sob ele, tomates-cereja e aipos grelhados com azeite de oliva, cuja crocância interrompia o silêncio nas salas de serviço.
No dia da estreia, o silêncio também foi interrompido pelo ruído de comensais que bebiam champanhe no mezanino. E, claro, acabaram conversando entre si.
Segundo a idealizadora, foi um dia incomum.
Para levar a atenção dos clientes de volta à comida, chegou a sobremesa, com pedaços de pêssegos assados com mel e nozes em diferentes texturas e rum secretamente camuflado em um formato sólido similar ao de passas.
"Isso nos deixa realmente atentos ao que estamos vendo, cheirando, provando e comendo", afirmou a chef Emmy Ronken. "Quando as pessoas estão sozinhas e desconectadas, elas ficam muito mais aptas a usar todos os sentidos, e acho que com isso o ato de comer passa a ser uma experiência totalmente nova".
E até mesmo social.
Os idealizadores do projeto informaram nesta quarta (19), que estão elaborando um livreto do Eenmaal e, por enquanto, não há agenda com novas edições de jantares.