Folha de S. Paulo


Ex-chef do restaurante nº1 do mundo leva 'culinária social' para Bolívia

O dinamarquês Noma, restaurante considerado o melhor do mundo quatro vezes pela revista inglesa "Restaurant", foi aberto em 2003 e nasceu da visão dos chefs Claus Mayer e René Redzepi de valorizar a biodiversidade nórdica e as técnicas de preparo regionais e de respeitar os produtos e as temporadas impostos pela natureza.

A receita foi exportada –e para um destino nada óbvio. Desde 2013, a Bolívia é o novo eldorado de Claus Meyer. E, no caso do projeto no país vizinho, também um empenho em impactar a sociedade com o fortalecimento de sua cultura gastronômica e capacitação de jovens talentos.

O restaurante Gustu é a mais forte e vistosa ponta do tripé do "Melting Pot Bolívia", projeto gastronômico e social fundado por Meyer na Bolívia. O nome significa "sabor" em aymara, uma das línguas indígenas oficiais do Estado plurinacional.

Em menos de dois anos, a casa foi eleita pela mesma "Restaurant" a 32ª melhor da América Latina. Uma conquista com sabor bem boliviano: todos os ingredientes usados têm origem no país e isso vale também para as bebidas (caso dos vinhos de Tarija e da bolivianíssima aguardente de uva chamada singani), assim como equipamentos do salão (exceto louça e prataria).

A língua oficial da equipe também é o castelhano. Mesmo para estrangeiros como a chef dinamarquesa radicada em La Paz, Kamilla Seidler, responsável por implantar a filosofia de Claus no Gustu.

"Eu não tenho a menor ideia de como a comida boliviana deve ser! Nem eu, nem Kamilla, sabemos como cozinhar os produtos que temos aqui", diz o chef dinamarquês. "O que sabemos é que temos que comprar do fazendeiro, ter biodiversidade, respeitar as temporadas. Mas ela vai se criar, se desenvolver em sua própria linguagem."

Nos menus-degustação, servidos em três versões, a entrada pode ter uma fresquíssima truta do lago Titicaca defumada e, nos pratos principais, é possível provar carnes exóticas. A de alpaca, uma espécie de parente sul-americano dos camelos, é servida como charque desfiado, com palmito fresco e gema de ovo, e a de lhama, em medalhões com raiz de cactos. Entre as sobremesas, há sorvete de chirimoya, conhecida no Brasil como fruta-do-conde.

"MELTING POT SOCIAL"

Das paredes do Gustu para fora existem dois grandes projetos de fundo social tocados por profissionais de gestão e professores de gastronomia, com foco em formação e treinamento de cozinheiros –as outras duas pontas do tripé.

O mais abrangente é o Manq'a, um centro de formação de profissionais de cozinha que capta jovens de baixa renda entre 16 e 28 anos. Por enquanto, há uma unidade (de 14 previstas até o final de 2016) em El Alto, carente cidade satélite de La Paz.

O objetivo é dar oportunidades –"queremos empoderar a comunidade e criar a cultura do empreendedorismo", afirma o coordenador Gilberto Bejarano– e há integração com o Gustu: os cinco melhores de cada turma ganham estágio no restaurante.

O terceiro vértice do projeto é o Suma Phayata, também voltado à capacitação profissional. Ainda recém-nascido, elegeu as cinco melhores comidas de rua de La Paz.

São exemplos os populares sanduíches de chola da Plaza de las Cholas, com pão tipo sarnita, macio e arredondado, pernil e molho ají, e o choripan de D. Elvira, do Mercado Lanza, com pão tipo marraqueta, que lembra o nosso pão francês, linguiça artesanal e molhos caseiros.

Comandados por mulheres, os postos passaram por avaliação de especialistas que sugeriram melhorias de métodos e técnicas das tradicionalíssimas "comidas callejeras paceñas", as comidas de rua de La Paz.

"Faço isso para melhorar a sociedade. Acho que fiz isso na minha e agora quero fazer isso por uma comunidade mais pobre. E, por causa da biodiversidade e do potencial da cultura gastronômica, a Bolívia é o lugar certo para isso", conclui Meyer.

GLOSSÁRIO
GRÃOS: assim como no Brasil, arroz e trigo estão bem presentes na cozinha boliviana, mas o grão mais popular por lá é o milho: há cerca de 1.500 tipos de "maíces" no país. A Bolívia também é conhecida por ser a terra da quinoa.
TUBÉRCULOS: se o Brasil é o país da mandioca, a Bolívia (em dobradinha com o Peru) é o da batata. Já foram catalogadas 1.555 espécies distintas de "papas" e tubérculos, como a roxa "la oca" e a adocicada yacon.
PEIXES: sem acesso ao mar, na Bolívia se consomem quase que exclusivamente peixes de rio. O mais popular deles é a truta, abundante no lago Titicaca, além dos amazônicos surubim e sábalo, conhecido no Brasil como curimbatá.
CARNES: o mapa da carne na Bolívia é semelhante ao do Brasil: frango, bovina e suína são, nessa ordem, as mais consumidas –e com curva ascendente de vendas. Na alta gastronomia, o país tem duas joias: lhamas e alpacas.
VINHO: do principal departamento vinícola da Bolívia, Tarija, a 2.000 metros de altura, saem vinhos de uvas merlot e petit verdot. Mas a bebida de uva mais típica é a Singani, aguardente feita a partir da moscatel.


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