Folha de S. Paulo


'Pesca industrial e turismo predatório ameaçam pescadores', diz especialista

"De repente você entra em uma canoa e, em menos de uma hora, chega em um lugar escondido entre as palmeiras, com umas aldeias arrumadinhas, lindas, e aqueles caiçaras com redes enormes, cheias de pescado", relata o historiador Ricardo Maranhão, 68.

Também professor de história da gastronomia na universidade Anhembi Morumbi, Maranhão passou o último ano e meio a recolher depoimentos de 25 comunidades pesqueiras tradicionais, que resistem no litoral do Brasil, e reuniu o resultado de sua pesquisa em "Gente do Mar', que acaba de chegar às livrarias.

Seu alvo foram as comunidades menos acessíveis por transporte -a maioria não se alcança de carro-, que preservam o modo de vida de pescar e de se alimentar de outrora. Os peixes e os frutos do mar assados na brasa (ou fritos, ou ensopados), as frutas nativas, o café socado no pilão adoçado com rapadura, os tubérculos plantados nos pequenos roçados.

A diminuição da pesca artesanal, massacrada sobretudo pela pesca industrial e pelo turismo predatório, que levou ao consequente desaparecimento gradativo dessas comunidades, motivou o historiador para fazer (e relatar) esse mapeamento em toda a costa -com ênfase no litoral paulista, antes que mínguem, sem volta.

Foi então que Maranhão topou com personagens como um pescador de Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, que tem 72 anos e "mais de 60 no mar" e com aldeias minúsculas, ou um líder de pescadores da terra de Caetano Veloso, em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, que lhe disse que para passar fome ali era preciso ser "muito vagabundo". "É só abaixar, enfiar a mão na terra e já tia um sernambi, um marisco, um caranguejo."

Também ouviu comunidades que se queixam da redução da fauna marinha e outras, ainda, articuladas a ponto de promoverem a fiscalização da atividade pesqueira (tão precária) e a criação de áreas prioritárias da pesca artesanal para salvaguardar as riquezas do mar.

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Há certo ineditismo neste mapeamento, não?
Existem mais livros sobre isso, mas é uma cultura pouco divulgada, porque nessas comunidades não há uma classe média intelectualizada que se interessasse em ir atrás de suas tradições e conservá-las, como tem no Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, ou no sul de Minas. Em geral, as pessoas saem, vão embora.

Os pescadores artesanais vão desaparecer?
É capaz. Por isso, a vida e o cotidiano dessas comunidades pesqueiras do litoral do Brasil precisam ser retratados com tanta urgência.

Por que essa atividade está à míngua, se compararmos com o passado?
A pesca industrial e o turismo predatório são os dois grandes elementos que dificultam a pesca artesanal. Mas a pesca industrial em si não é um mal. O problema é que grandes barcos invadem lugares que deveriam ser preservados, como baías e lagunas, devastam áreas que não são delimitadas para empresas, usam redes imensas e muito fechadas, que arrastam tudo e pegam um monte de animais que não deveriam ser pegos

Muitos personagens do livro citam a escassez de peixes e frutos do mar...
A grande queixa do movimento Slow Food internacional é a devastação dos mares, a pesca industrial em alto-mar. Cadê o atum dos japoneses? Tá acabando. E tem muita coisa que está acabando além disso. A nossa lagosta, por exemplo. Como a gente tinha lagosta de graça lá em Pernambuco. Ceará ainda tem, mas é tudo muito caro. Meca também anda difícil

E a pesca artesanal (ainda) é sustentável?
Ao visitar essas comunidades, a gente vai descobrindo que não é uma fantasia dizer que esses pescadores artesanais respeitam o meio ambiente. Isso é real. Eu fui entender, por exemplo, como é maravilhoso o método do cerco. Aqui na região de Cananeia e Iguape [no Estado de São Paulo] é um método que indígenas usavam há centenas de anos, pelo menos. E é interessantíssimo porque respeita o meio ambiente –o peixe entra no cerco de madeiras fincadas no chão, com redes internas, e não consegue sair. Quando vai ser feita a despesca, ou seja, quando o pescador vai catar os peixes, ele só pega o que é bom e o resto devolve ao mar.

A articulação entre pescadores é capaz de preservar as tradições?
Esse é o único jeito a longo prazo. Os pescadores, quando estão articulados, conseguem com que as autoridades baixem regulamentos que dificultam a pesca predatória. Não precisamos ir longe para identificar um caso bem concreto –vamos aqui a São Francisco do Sul, em São Sebastião. A comunidade se organizou, pressionou o governo, pressionou o Ibama, fez o diabo, e conseguiu com que a prefeitura os ajudasse a manter os barcos grandes da pesca industrial distantes de uma área específica. Além disso, eles conseguiram que a prefeitura providenciasse um caminhão frigorífico. Mas é uma luta. E nem todas as comunidades têm essa iniciativa. A maioria não tem. Onde tem, tudo funciona um pouco mais.

E a fiscalização funciona?
É precária. Quando os pescadores insistem, aí é melhor. Por exemplo, em Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, a fiscalização começa a funcionar porque os próprios pescadores se articulam e, frequentemente, em alguns lugares eles são os próprios fiscais. Eles entram em um 'convênio' com o Ibama ou com a autoridade local e fazem a fiscalização –é o único jeito. Quando você deixa por conta do poder central uma costa imensa como a nossa, não funciona.

Mas as comunidades mais isoladas têm essa consciência?
Depende do Estado. Os pescadores são mais articulados em Pernambuco, no Ceará. No Ceará tem um caso, que eu relato no livro, que os pescadores enfrentaram uma empresa norte-americana e dois deles até foram assassinados, mas eles conseguiram. A própria justiça norte-americana interferiu e impediu que se caçasse lagostinhas lá. Os grandes barcos levavam embora as lagostas novinhas para vender em Miami e achavam o maior barato servir lagostinhas novas. Gente, que coisa absurda.

Existe perspectiva de quanto essas comunidades vão durar?
De um lado, na medida em que essas comunidades têm o apoio das autoridades controlando a pesca predatória, elas conseguem sobreviver e manter suas tradições. Também é preciso garantir a longo prazo uma boa relação com um turismo não predatório. Já que o turismo é inevitável, é preciso se relacionar com isso de tal forma que o pescador não seja esmagado, como acontece em algumas praias, nas quais ele é expulso e fica sem espaço para desempenhar suas atividades tradicionais. Acaba virando um serviçal do turista, mal pago -caseiro, pedreiro.

E o governo?
Via pressões das colônias, há a possibilidade de ter uma iniciativa governamental, mas infelizmente, o Ministério da Pesca não disse até hoje ao que veio, né? Capitanear a fiscalização, trazer apoio aos pescadores artesanais, criar linhas de financiamento para comercialização seriam funções do Ministério da Pesca.

O ministério é alheio a essas questões?
Não me pergunte isso, se não vou declarar guerra contra o Ministério da Pesca. A gente se ressente dessa falta de uma iniciativa governamental.

Um assunto mais apetitoso O que você comeu de diferente nas "expedições"?
Ir a essas comunidades tem um sabor de descoberta. De repente, você encontra pequenos detalhes, como o prato azul marinho [um cozido de postas de peixe e banana-nanica] temperado com o coentro caiçara, que nós não conhecemos –só dá ali, no meio das pedras na fronteira entre a mata atlântica e a restinga litorânea. O peixe fica mais gostoso. Conheci também a sororoca [peixe da família do atum], no Pouso do Cajaíba, [município de Paraty, no Rio de Janeiro] e provei moquecas na Baia de Todos os Santos. É comum fazer moquecas de mexilhões, mas eles fazem uma misturada com sernambi um [molusco] e camarões.

E os roçados?
Havia pequenas lavouras de feijão, arroz, banana, cana para aguardente, algum milho e, acima de tudo, mandioca, nessas comunidades. Mas estão também desaparecendo por conta do avanço imobiliário –e a agricultura de subsistência hoje é uma atividade clandestina [na Ilhabela, em São Sebastião, por exemplo].

O sertão vai virar mar ou o mar vai virar sertão?
O mar é surpreendente. É como disse o Joca, de Juquei [no litoral paulista], ele não está no livro, mas trabalhou muito tempo como caiçara de sertão, que é o cara da agricultura. De uns 15 anos para cá, ele veio para o litoral para ser pescador. Perguntamos: "O que é mais difícil, ser pescador ou ser lavrador?" Aí ele pensou, pensou e respondeu de uma maneira metafórica fantástica: "Olha, a terra é dura, mas o mar é mole. O mar é um perigo".


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