Folha de S. Paulo


Jovens chefs resgatam culinária judaica em Nova York

Gefilte fish artesanal. Bagels de fermentação lenta. Picadinho de fígado orgânico. Schmaltz sustentável.

Não, não se trata de uma nova safra de piadas judaicas, mas de pratos reais que chegaram recentemente à cena culinária de Nova York, e servem como prova de um movimento forte e repentino entre jovens cozinheiros –a maioria dos quais norte-americanos de ascendência judaica– para resgatar e perpetuar os pratos de seus ancestrais. É por isso que, a essa altura do século 21 em Nova York, a vanguarda da culinária capricha na beterraba, no repolho e no arenque, como faziam os judeus do século 19 na Europa Oriental.

Sasha Maslov/The New York Times
Seleção de peixes defumados do Russ & Daughters Cafe, recém-aberto em Nova York
Seleção de peixes defumados do Russ & Daughters Cafe, recém-aberto em Nova York

"A realidade é que nossos ancestrais sabiam o que estavam fazendo", disse Jeffrey Yoskovitz, um dos donos da Gefilteria, uma companhia que produz versões incomuns de gefilte fish e está começando a se aventurar no ramo dos picles de fermentação lenta e nos strudels. "As receitas e técnicas haviam praticamente desaparecido, e temos de capturar esse conhecimento antes que ele seja perdido."

A onda que começou com a Gefilteria, as delis da rede Mile End e casas como a Shelsky, no Brooklyn, e a Kutsher, em Tribeca, ganhou força subitamente, com três novas casas inauguradas em abril. A Black Seed Bagels, uma padaria equipada com forno de tijolos criada pelos donos da Mile End, oferece coberturas como requeijão e rabanete, salmão curado com beterraba e rabanete melancia. O Baz Bagel & Restaurant, uma casa alegre que abarca de Minsk a Miami, oferece pudim de pão feito de babka, blintzes com aroma de limão e bagels de centeio feitos à mão. E o Russ & Daughters Café serve o lendário peixe arenque defumado da casa acompanhado por clássicos repaginados como um caldo de pescado branco e sorvete de halvah com caramelo salgado.

Os chefs e artesãos que comandam essas novas empreitadas estão promovendo os pratos que costumavam ser feitos pelos seus avós e agora estão desaparecendo –blintzes e babka, kasha e knishes– e restaurando seu vigor com uma infusão de ideias culinárias modernas.

Nos anos 70, esse tipo de comida virou piada, quando as consequências de saúde de uma dieta envolvendo carne, sal, pão e molhos densos se tornaram aparentes, e quando comidas fortes e de cheiro intenso como o picles de alho e endro ou o arenque com cebola crua pareciam datadas, e até embaraçosas. "A rejeição dessa comida era parte do processo de assimilação", diz Devra Ferst, editora do blog culinário The Jew & the Carrot.

Mas agora, os valores da revolução culinária (produtos locais frescos, sustentáveis e sazonais) inspiraram toda uma geração de norte-americanos jovens de ascendência judaica, que descobriram maneiras de aproximar as duas coisas. "A comida kosher não refletia a nossa geração e o nosso gosto", diz Yoskowitz. Ele e a sócia, Liz Alpern, têm 29 anos. "E a comida moderna não refletia a nossa história."

Há novas delis judaicas artesanais em Atlanta (The General Muir), Los Angeles (Wexler's Deli), Seattle (Stopsky's) e San Francisco, o epicentro do movimento na costa oeste, onde a Shorty Goldstein's, a Wise Sons e a Old World Food Truck concorrem não só em suas lojas mas nas ruas.

O objetivo é a preservação, seguido de perto pelo improviso. Eles estão aprendendo a defumar peixes, fermentar picles e cozinhar e assar pão de centeio como seus ancestrais faziam. Estão oferecendo jantares pop-up de sabbath nas noites de sexta-feira, como no passado, nos quais o pão judaico trançado conhecido como challah pode ser temperado com cheddar ou com óleo harissa. E nas cozinhas e na mídia social, eles estão construindo uma colmeia de relacionamentos, conhecimentos e ideias que pode ser descrita como um shtetl virtual.

Noah Arenstein, advogado em tempo parcial, criou a Scharf & Zoyer (iídiche para ácido e azedo), com o objetivo de produzir versões malucas dos sanduíches de deli, como pele frita de frango e crème fraîche de endro, com pão de kugel, e um "patê de salmão coreano" com requeijão, salmão, gojuchang e cebolinha verde. Quando estava à procura de um pão aromático para um sanduíche de salada de atum, Uri Scheft ajudou a criar um croissant "completo" com o mesmo exterior crocante e aromático de um bagel completo. (Scheft também faz o melhor babka de chocolate de Manhattan, bem como outras delícias da culinária asquenaze.)

A equipe da Gefilteria fez amizade com Theo Peck, que cresceu trabalhando no Ratner's, o restaurante de sua família no Lower East Side, e acaba de abrir o Peck's, um café perto de sua casa em Brooklyn. "Estávamos procurando por algum para usar nosso kvass de beterraba", disse Alpern, mencionando a mistura líquida que dava ao borscht tradicional a sua pegada agridoce na época em que vinagres eram desconhecidos nos climas mais frios. "E ele estava à procura de um picles muito bom".

Os dois estão desenvolvendo picles de fermentação lenta e kombucha, usando o porão frio do Peck's como laboratório.

Mas esses cozinheiros e padeiros precisam caminhar com cuidado. "A comida precisa ter a cara conhecida, o sabor conhecido e o cheiro conhecido, e ao mesmo tempo ser deliciosa", disse Peck.

O Ratner's fechou em 2004 e muita gente ainda sente sua falta. No Peck's, o cardápio inclui borscht de beterraba em conserva (com uma dose de kvass), língua curada na casa e uma versão grande e dourada dos lendários muffins de milho do Ratner's: farelentos, amanteigados e ligeiramente crocantes. O picadinho de fígado espesso e rico, ao estilo judaico, é servido com pão de cebola da Orwasher's, no Upper East Side (ainda que ele espere conseguir recriar o famoso pão de cebola do Ratner's). Mas porque Peck também é um chef treinado, que trabalhou no Blue Hill em Stone Barns, ele oferece igualmente uma terrina de fígado de frango suave, temperada com ervas clássicas de charcuteria francesa e servida com uma geleia de verjus. "As duas coisas são parte de quem sou", ele diz. "Como eu poderia escolher entre elas?"

Os atuais proprietários da Russ & Daughters original, Josh Russ Tepper e Niki Russ Federman, são bisnetos do proprietário original, Joel Russ, que vendia arenques fatiados no Lower East Side. Eles sentem a força da tradição, provavelmente porque o negócio de sua família continua robusto depois de quase cem anos. Os dois abriram o Russ & Daughters Café na rua Orchard (onde seu bisavô estacionava a carroça na qual vendia arenques), a alguns quarteirões do restaurante original na East Houston Street. O café tem o ar de asseio que torna o restaurante original tão querido, mas força as fronteiras da tradição ao servir caldo de pescado branco defumado com pimenta espelette, gengibirra artesanal, com lavanda e limão, e pão matzo torrado com manteiga e sal.

"Estamos sempre conscientes de que tomamos conta de um pedaço da História", diz Federman. "Mas não podemos funcionar só com base na nostalgia".

Em 1914, quando a loja original foi aberta, o Russ & Daughters era uma das muitas casas do tipo, mas o bagel, o hot dog de carne bovina e o sanduíche de pastrami ainda não se haviam tornado símbolos culinários da cidade. Na época, mais judeus respeitavam as normas da cozinha kosher (que separa o leite e a carne e proíbe o consumo de carne de porco e crustáceos, entre outras proibições e normas), e diferentes empreitadas surgiram de partes distintas da dieta tradicional judaica. Nos restaurantes que trabalhavam com laticínios, como o Ratner's, blintzes, latkes de batata e queijo do campo eram produtos de muita procura. As lojas de "aperitivos" como a Russ & Daughters e a Murray's Sturgeon Shop vendiam peixes, que podem ser comidos com leite ou com carne.

E havia também as padarias.

Milhares de judeus que se assentaram em Nova York haviam vivido por muitas gerações na área que hoje abarca Áustria, Hungria, sul da Alemanha, Lituânia, Rússia, Polônia, Ucrânia e Geórgia. Eles transferiram as ricas tradições de panificação dessas regiões ao seu novo lar sem perder coisa alguma, e trouxeram com eles pães ázimos, bolos de café fermentados, delicados strudels, biscoitos amanteigados e pãezinhos de toda espécie, incluindo bialys e bagels. Muitos dos "bagels de Nova York" modernos são uma monstruosidade inchada e doce demais, produzidos como todos os demais pães industrializados. Em lugar de fermentação lenta, eles usam ingredientes que os fazem crescer rápido, e são cortados com moldes industriais (em lugar de enrolados à mão), e cozidos a vapor (em lugar de fervidos) e aspergidos com xaropes de açúcar, antes de serem assados, a fim de adquirir aquele lustro tão apetitoso.

Mas enfim surgiram sinais de esperança. Algumas das padarias mais antigas, como a Orwasher's e a Kossar's Bialys, estão sob nova administração e começam a retornar a pães menos comerciais e de sabor superior. A Russ & Daughters localizou um padeiro judeu em Springfield, Massachusetts, que usa equipamento fabricado 80 anos atrás para a padaria que sua família operava no Bronx e fechou muito tempo atrás. Agora ele está de volta a Nova York e produzindo pães à moda antiga como o schissel de milho e centeio, com sementes de cominho, e um pão de centeio à moda antiga assado dentro de uma camada fina de fermento leve, para proteger a crosta contra assadura excessiva.

Melissa Weller, que era a padeira responsável pelos pães do Per Se, Roberta's e Babbo, começou a trabalhar por conta própria como produtora de bagels no verão passado, no Smorgasburg, uma feira semanal de comida na qual muitos dos empreendedores culinários nova-iorquinos iniciam suas trajetórias. A demanda imediata que ela encontrou se provou esmagadora. "As pessoas estavam literalmente famintas por bagels".
Weller não é nem judia e nem nova-iorquina, mas sua missão na vida é criar o bagel perfeito para o século 21: fermentação lenta, cozido com água e assado lentamente. Sua primeira e brilhante inovação foi colocar as cebolas dento da massa do bagel de cebola, e não na crosta, onde elas invariavelmente se queimam e azedam. A mais recente versão envolve desidratar e depois reidratar cebolas frescas e alho-porró para perfumar a massa. (A ideia será introduzida por uma padaria que está sendo construída pelos sócios do Major Food Group.)

Ao bagels enrolados à mão e assados em forno de lenha da Black Seed causaram filas de quarteirões de extensão quando a padaria foi inaugurada, duas semanas atrás, e não são nem bagels de Nova York, mas sim bagels de Montreal, um estilo mais fino com revestimento fantasticamente generoso de sementes de sésamo ou papoula.

As coberturas refletem o estilo pioneiro da Mile End, próximas da tradição asquenaze mas mais brilhantes e leves. Salmão gorduroso é curado na casa com suco de beterraba e sal, ou Ben's Cream Cheese, um produto local, combinado a rabanetes, com uma camada crocante de rabanetes melancia para oferecer a cobertura perfeita.

Laura Silver, nascida em Brooklyn e autora de um livro sobre knishes, disse que o prato chegou a Nova York via Knyszyn, uma pequena cidade polonesa nas cercanias de Bialystok, onde a população era mais de 50% judaica antes da Segunda Guerra Mundial. Os knishes europeus eram bolinhos redondos e gordos assados com recheio de batata ou kasha. Hoje, muitos jovens de Nova York só conhecem a versão chata, quadrada e frita do knish, odiada por muitos tradicionalistas.

"Vejo-me como defensora de todos os knishes", diz Silver, acrescentando que muitas delis judaicas modernas servem knishes feitos à mão. "Creio que estejamos entrando em uma era dourada, onde o quadrado e o redondo podem coexistir".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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