Folha de S. Paulo


Miranda em Mianmar

O rio estava baixo –assim como era baixa a temporada. Só a temperatura se recusava a baixar, orbitando em torno dos 35ºC, apesar de o relógio já marcar mais de 17h. Meu quarto naquele hotel –que hospedou o primeiro-ministro do Camboja em novembro de 2003 (como a placa na parede anunciava com orgulho)– não oferecia refresco, mesmo com o ar-condicionado bombando. Procurar uma sombra naquela paisagem era talvez a melhor solução.

Peguei o livro esquecido na cabeceira –como são esquecidos todos aqueles que você encaixa na mala na esperança de que a viagem deixe você ler alguma coisa– e fui para o jardim com a missão de repousar de um dia intenso de visitas a dezenas de pagodes, ou "stupas".

Se os nomes não trazem a você uma imagem familiar, explico rapidamente: esse é um monumento típico do budismo, uma espécie de grande sino, dourado (de preferência), que pode servir como abrigo para relíquias de um religioso ou simplesmente objeto de meditação.

Mianmar, o país de onde acabei de chegar, é cheio delas. E Bagan, o sítio histórico onde fiz uma das escalas por lá, é especialmente cheio delas. Cheio tipo mais de 2.000! E apesar de nem todas terem sido restauradas impecavelmente pelo bizarro regime militar que tomou conta do país nas últimas três décadas –ou ainda, apesar de boa parte delas nem ter sido tocada por um sopro de restauração–, o conjunto é uma das coisas mais impressionantes que vi na minha vida.

Andar por essas "stupas" é uma experiência transformadora. São detalhes arquitetônicos, afrescos (que nos remetem a igrejas cristãs!), nichos, esculturas –e Budas, muitos Budas. Tudo enche seus olhos de deslumbre e devoção, mesmo para quem não é adepto da filosofia (eu mesmo costumo dizer que sou um "budista diletante!").

Em cada passeio, que você pode fazer de carro, bicicleta, charrete (ou mesmo, para os mais animados, a pé), você entra mais no clima do lugar, que é estupendo. O calor que mencionei acima é cruel –ainda mais nesta época do ano, ainda mais por volta do meio-dia. Mas enquanto você está lá visitando, toda dificuldade é superada. É como se seus sentidos fossem anestesiados.

Voltarei a Bagan e a Mianmar em breve, neste mesmo espaço –tudo é lindo demais para caber numa só coluna. Mas agora deixe-me retornar àquele tórrido fim de tarde, às margens do rio Ayeyarwady, onde, mesmo que meu olhar evitasse, eu conseguia enxergar, na sua distante margem oposta, mais uma "stupa" majestosa brilhando como ouro no alto de uma colina.

O livro que mais uma vez ensaiava começar era o novo de Miranda July, "O Primeiro Homem Mau". Nas outras tentativas –avião, trajetos de carro, fim de noite na cama...– não fui feliz. Mas naquele momento ali em Bagan, com a luz perfeita, o espírito alimentado, o isolamento ideal, a paz sugerida e o cansaço aplacado, eu finalmente engatei na leitura. E tudo começou a fazer sentido.

A voz surreal de Miranda, seu tom cotidiano e ao mesmo tempo extraordinário, sua atenção a detalhes inusitados da nossa vida: tudo encaixou-se perfeitamente no que estava vivendo ali.

E foi então que o livro "esquecido" virou parte de uma paisagem que, assim como suas frases mágicas, eu nunca vou esquecer.


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