Folha de S. Paulo


Mais um dia na Mongólia...

A foto não saiu ruim, mas não estava perfeita. Mesmo na diminuta tela da câmera digital que eu levava já era possível ver que não tinha nitidez. Mas tinha alegria –exatamente o que eu esperava capturar: no meio do nada, um garoto de seis anos tentava montar num bezerro recém-nascido que, mesmo desajeitado, conseguia escapar dos dedos miúdos do menino tentando agarrar seu pelo novo.

À direita, a sombra longa das suas figuras. Acima, um céu azul como se tivesse acabado de ganhar uma demão. Atrás, um descampado, e só lá longe algumas montanhas desafiavam o horizonte. Mas em contraste com essa paisagem tão estática, menino e bezerro improvisavam um agitado balé –desesperado para o bicho, divertidíssimo para a criança.

Sua risada, congelada na foto em sua boca escancarada, quase disfarçava sua nada sutil "zarolhice". Esse seria o ponto alto do seu dia, que, não fosse pelo "ensaio de rodeio", seria igual ao anterior –e ao que veio antes dele, e antes deste também. Igual a todos. Igual a tudo por ali. Se sua casa é um "yurt", se sua família é nômade, e se ela se desloca pelo vale do Orkhon, na Mongólia, sua rotina não muda muito de um dia para o outro. A não ser que apareça um bezerro disposto a "brincar".

Eu mesmo tinha passado a noite anterior numa dessas habitações –uma tenda, até bem grande, que os mongóis montam e desmontam no seu vagar infinito pelo país onde a propriedade privada ainda não é uma instituição. Chegou, não viu ninguém em volta... é ali mesmo que eu vou armar minha tenda.

Minha estadia no "yurt" não foi o que eu classificaria de "confortável". Apesar de a estufa central ter sido bem abastecida com lenha à noite, o fogo não vingou a madrugada, deixando espaço para o vento frio entrar por incontáveis orifícios.

Para entender melhor a experiência de morar num lugar desses, no dia seguinte fui conhecer a família de Okhuntemid. Ela era a mãe do garoto da foto e morava com ele, o marido, a mãe e um filho mais velho (que só vinha nos fins de semana, pois estudava "na cidade") no "yurt" da família. E gentilmente me convidou para jantar.

Hesitei, pois já sabia que a comida era pouca por ali. Muito iogurte, bem gorduroso. Um ou outro produto industrializado. E, de vez em quando, uma cabeça do rebanho era sacrificada e rendia carne para algumas refeições. Eles haviam matado um carneiro há poucos dias, mas como eu mostrei curiosidade pelo ritual, antes que eu perguntasse quando seria o próximo abate, o marido de Okhuntemid me trouxe nos braços o jantar. Já degolado.

Juro que não havia pedido nada. Estava só fazendo uma pergunta de repórter! Mas, querendo agradar, o dono da casa se adiantou, e logo Okhuntemid preparava o carneiro de um jeito bastante original: numa panela funda, alternava uma camada de carne com outra de carvão em brasa. Virtualmente todas as partes do animal, inclusive suas entranhas, foram cozidas daquela maneira. Estranho, mas ficou bom.

Tão bom que a mãe de Okhuntemid, vendo que eu deixei alguns restos no meu prato –ossos e gorduras–, nem pensou duas vezes: veio encher sua mão (e seu estômago) com minhas sobras. O menino, no entanto, só jantou leite, com biscoitos que o pai tinha trazido de sua última visita à Kharkhorin, o lugarejo mais próximo de onde eles estavam acampados há duas semanas.

Hoje ele já deve estar com uns 12 ou 13 anos –certamente já não brinca mais com os bezerros. Talvez os mate para comer. Mas posso apostar que ainda está vagando com sua família por aquela paisagem única, onde uma árvore é ainda mais rara que um jantar bem servido...


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