Folha de S. Paulo


Carta ao Pacheco 1º

Amigo torcedor, amigo secador, é chegada a hora de conversar com o conde Afonso Celso, que ainda em 1900, publicou o seu genial "Porque Me Ufano do Meu País", assim mesmo em nacionalíssimo apelo brasuca. Genial porque o absurdo também é fruto do gênio, ora pois, desde que o gênio esteja exposto também ao nosso brasileiríssimo sarro ou tiração de onda, como me alerta aqui o Marcelo D2.

O certo é que o velho conde, quase um século antes da publicidade nacionalista e boleira, inventou o pachequismo, a arte de ver ou país ou torcer como o Pacheco da propaganda das lâminas de barbear –ironia da história é que a pachecada publicitária ocorre justamente em 1982, quando nem carecíamos tanto dessa onda da pátria em chuteiras e perdemos do mesmo jeito etc.

A função técnica cameloística, digamos assim, com todo perdão aos respeitáveis camelôs expulsos pela força bruta e nada cristã do rapa, era vender gilete sob o apelo cívico contra o novo vira-latismo que se instaurara de 1970 até aquela data.

Continuemos na antropologia rasa, afinal de contas boiar no mar é de graça, como canta minha amiga Karina Buhr. Donde o conde foi nosso Pacheco 1º.

Mas quem primeiro brincou com a máxima do conde, comparando o livro patriótico aos piores momentos do "Brejal dos guajas", do acadêmico José Sarney, foi o Millôr Fernandes, ainda nos anos 1980, na velha "Veja". Daniel Piza, que nos deixou precocemente, usou o bordão, com uma negativa marcante, na sua coluna no novíssimo "Estadão" nos anos 2000.

É preciso, neste ano de Copa, reler o conde. É o que tenho feito, depois de ganhar uma cópia de minha amante bibliófila da rua do Ouvidor, brotinho que curte paradoxos e livros antigos. Foi durante uma cerveja crepuscular com o amigo Marechal, na toca do Baiacu, que ela irrompeu do vizinho sebo "Folha Seca" com o presente crepitando no celofane. Que bonito é.

O conde dizia assim:

"Quando disserdes 'Somos brasileiros!', levantai a cabeça, transbordantes de nobre ufania. Deveis agradecer todo dia a Deus o haver Ele vos outorgado por berço o Brasil.

A flora brasileira é maravilhosamente rica, dado aí se juntarem todas as flores e frutas do universo.

Negros, brancos, peles-vermelhas, mestiços, vivem aqui em abundância e paz."

Antes de Gilberto Freyre, como lembrou o Piza, foi o monarquista que louvou a tal da democracia racial.

Esqueceu apenas de avisar, mais de um século depois, aos brasileiros que frequentam estádios de futebol, bares, boates, feiras livres, shoppings antirrolezinhos etc.

Esqueceu de avisar à tal justiça desportiva, seja do Rio Grande do Sul ou de qualquer parte dos tristes trópicos, que 30 patacas e mando de campo é apenas rubricar, subscrever e assinar em branco –com trocadilho mesmo!– a aprovação ao ato de injúria racial sofrida pelo juiz Márcio Chagas.


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