Folha de S. Paulo


Abstinência futebolística

AMIGO TORCEDOR, amigo secador, a síndrome de abstinência de futebol é pior do que o jejum do mais cruel dos vícios. Cheguei a acordar no meio da noite e, sonâmbulo, busquei a última pelada de garçons x porteiros no Aterro do Flamengo. Como quem sai em busca da última casa de ópio do planeta, meu caro Nick Tosches.

Torci pelos garçons, que me desculpem os senhores que gentilmente me abrem o portão nas madrugadas com ares de São Pedro de todos boêmios. Os homens da bandeja não estavam nas suas melhores jornadas. Derrota impiedosa. Dei bom dia à tristeza e voltei para casa como o mais saciado dos homens. O importante era testemunhar um jogo de futebol no campo. Fosse qual fosse o embate.

No resto do dia, fiz resenhas para mim mesmo sobre a partida e saí a discuti-las pelos botequins. Lá estava o botafoguense Álvaro Costa e Silva, El Marechal, outro fanático pelo time dos garçons, que não me deixou ficar falando ao vento.

O amigo alvinegro tinha também a sua tese sobre a derrota dos atletas dos bares. O garçom, defendeu ele, é o mais completo dos profissionais sobre a terra. Nos serve, nos ouve em momentos de gravidade como um terapeuta, nos conduz ao táxi, nos protege da brabeza de algumas mulheres ou da chatice de fregueses malas. No futebol, no entanto, pecam por excessivas assistências e raríssimas finalizações.

O entusiasta dos campeonatos gringos, diria, zombando da nossa alegada abstinência: o calendário europeu me satisfaz, fiquei vendo o Espanhol, o Inglês, o Italiano. Chega de pelada. Qual o quê. Falo de futebol com envolvimento, passionalidade, aquele que pauta a vida do boteco da esquina de casa e a volta à firma na segunda-feira.

Não há uma só criatura em Madureira que se entusiasme com o Lionel Messi ou o Cristiano Ronaldo. O coração do subúrbio é à prova de eventuais globalizações.

Maldita abstinência. Só os corintianos não viveram, nestas férias ludopédicas, a tal síndrome. Tenho um colega que viu umas trinta vezes o teipe da final do Mundial de Clubes. Quase perde a mulher por isso. Em pleno sul da Bahia e o cara vibrando com o gol do Guerreiro como se visse ao vivo.

Falar em mulher, o recesso do futebol provoca muito estrago nos lares. Haja separações. A amada mal sabe que foi a falta do ópio que causou tal inferno. O mais dócil dos maridos vira um Jack, um monstro, na ausência do seu clube.

Em vez de facilitar a prática sexual, complica. Neste período o macho renova o complexo de castração que havia sofrido, segundo Freud, por volta dos cinco anos de idade. Parece viagem, amigo, mas a mutilação simbólica procede.

Um homem sem o time, seja ele o melhor do mundo ou apenas o saco de pancadas, é apenas uma fera, um selvagem, um animal perdido.


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