Folha de S. Paulo


Só a opressão não basta

Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress

No final do século 19 e no começo do século 20, a África conheceu um experimento de confinamento que seria retomado em uma das mais sombrias histórias das décadas posteriores.

Na África do Sul, os ingleses usaram, pela primeira vez em larga escala, o deslocamento de uma população de habitantes para campos de concentração, no interior daquilo que ficou conhecido como a "Guerra dos Bôeres". Em torno de 120 mil afrikaners (algo como 10% dessa população) foram deportados, sendo que 25 mil morreram confinados em campos de condições sub-humanas.

A experiência da brutalidade da opressão ficou marcada em sua memória coletiva e se transformou em um forte desejo de defesa e de autopreservação. Décadas depois, quando os afirikaners conseguiram enfim aplicar suas políticas em todo o país, foram eles que responderam à brutalidade com outra brutalidade, instaurando o apartheid a partir de 1948 e levando, assim, ao ápice a segregação contra as populações negras.

Lembrar disso agora talvez ajude a demonstrar que, de certa forma, a experiência de opressão não basta para a produção de experiências políticas com potencial emancipatório. A opressão muitas vezes pode levar apenas à justificação de práticas de autopreservação comunitária diante da lembrança, constantemente reiterada, de uma violência anteriormente sofrida.

Fomos violentados e temos o direito de tudo para que sequer a sombra desta violência não paire novamente. Assim, se a ação política dos anteriormente oprimidos não será, imediatamente, traduzida em emancipação coletiva, é porque ela será apenas uma mera ação de defesa e de regressão social.

Lembremos de vários momentos nos quais a opressão anterior acaba por justificar práticas de imunização. Ou seja, ela irá mobilizar todos os recursos e as forças para imunizar grupos, reforçar a segurança, constituir fronteiras. A política se reduzirá então à gestão da imunização.

Muito diferente é, no entanto, uma experiência da opressão que não é lida a partir dos móbiles da autopreservação. Ela pode então se transformar em uma sensibilidade generalizada a situações análogas de violência.

Por isto, ela não produzirá um desejo novo, a saber, o desejo de constituir um espaço no qual as experiências múltiplas de opressão possam ser assumidas pelo mesmo sujeito genérico, implicadas em várias histórias. Ela não estará ligada à consolidação de práticas de imunização, mas levará a uma luta geral contra as causas estruturais das múltiplas opressões e produzirá, com isto, alianças cada vez maiores.

Ao menos neste caso, a opressão acaba por operar um certo descentramento. Ela me leva não exatamente a reforçar minha defesa, mas a criar uma outra fala e uma outra ação. Uma fala que ainda não existe porque pressupõe recusar a identidade dada pelo opressor.

Aquele que oprime define, normalmente, a identidade de quem é oprimido, porque ele instaura um circuito de violência baseado no olhar do opressor. É a violência do opressor que nomeia, que diferencia, que criar uma certa identidade coletiva. Não há identidade coletiva que não tenha sido fruto da violência de um opressor.

No nosso exemplo foi, entre outros, a violência do imperialismo britânico que fortaleceu e deu sentido à identidade afrikaner. Por isso, agir a partir do lugar definido pelo próprio opressor, apenas invertendo seus sinais, é, no fundo, uma forma astuciosa de perpetuar a opressão, agora sob as costas de outros.

Uma luta efetiva contra a opressão partirá então de destituir esses lugares que a própria experiência da opressão constituiu. Falar a partir do lugar dos oprimidos só é possível à condição de recusar os nomes que, até agora, foram usados para defini-lo.


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