Foi sem palavras que o fotógrafo Mauro Restiffe resolveu publicar o primeiro livro com seus trabalhos (ed. Cobogó, 272 págs.). Não há aqui os textos introdutórios tão comuns em volumes sobre fotografia. Não há o título das obras em legenda –os títulos e créditos estão em um encarte à parte– nem sequer os números das páginas.
Em suma, não há fala, nada que se assemelhe a uma fala que viria em momento posterior à imagem, organizando-a, direcionando seu sentido, construindo exteriormente suas relações. Há apenas esse modelo muito singular de presença que nós chamamos normalmente de "imagem".
Um dos fotógrafos brasileiros mais consistentes de sua geração, Restiffe apresenta um livro capaz de construir por subtração, como se criar fosse, inicialmente, retirar as coisas do horizonte que normalmente lhes envolve.
Mas esse gesto de deslocamento não se dá por meio do ato bruto de suspender o objeto de seu contexto, como vemos em várias estratégias de produção da arte contemporânea que visam criar uma espécie de "aura de pedestal".
Aqui, a subtração se dá por corte. São espaços cortados, ângulos de construções arquitetônicas que emergem de sua função, cadeiras de praia em praias vazias, edifícios que aparecem como monumentos, monumentos enquadrados pela metade. Como se o corte liberasse o instante de seu fluxo, o espaço de seu código.
No entanto, há uma subtração ainda mais decisiva e impressionante. Há uma camada do mundo humano que falta.
Marcelo Cipis/Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Para liberar o instante de seu fluxo, o espaço de seu código, Restiffe retirou do horizonte de experiências uma camada de mundo humano. Há pessoas em suas fotografias, assim como há uma profusão de espaços sem pessoas.
Mas as pessoas, quando aparecem, na maioria das vezes, se manifestam como massa, como aglomeração, como grupo ou, ainda, como personagens de uma imagem que parece remeter a imagens arquetípicas do universo artístico. Raras são as fotos que colocam em cena algo que poderíamos chamar de "intimidade" (quando elas aparecem são como cortes de séries) e os poucos retratos humanos parecem guiados pela procura de "singularidades".
Em um mundo no qual a intimidade é submetida a um regime tirânico de superexposição, em que a "espontaneidade" é o espaço por excelência de imposição de códigos disciplinares de conduta e comportamento, em que os gestos aparentemente mais "livres" trazem em si o peso brutal de uma história de adestramento dos corpos e de padronização das individualidades, retirar uma camada do mundo humano é uma postura ética.
Ela consiste em não fazer da vida privada um refúgio ilusório, estratégia clássica do mundo burguês com a intimidade de suas homes desenhadas por decoradores, com sua memorabilia de viagens exóticas.
Mas esse ato de retirar camadas é uma forma de desvelamento. É desta maneira que Restiffe pode deslocar nosso olhar em direção ao lugar no qual os sujeitos efetivamente estão. Se Restiffe é um dos poucos fotógrafos atuais a saber fotografar processos históricos (vide sua bela série intitulada "Empossamento", sobre a posse de Lula em 2002, e suas fotos de manifestações populares na Rússia), é por saber que sujeitos não são indivíduos. Sujeitos são processos. Suas fotografias têm, em vários momentos, a força de quem apreende processos, de quem percebe grupos e massas em dinâmica de incorporação.
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Mas, principalmente, há sujeitos também nas coisas, nas marcas das coisas construídas, deixadas normalmente fora do olhar, mas marcadas pela presença humana indireta. Há o tempo das coisas, que revela uma impressionante dimensão passiva do tempo humano. Um tempo passivo, distinto da atividade dos processos de incorporação. É da imbricação destes dois tempos distintos, tempos a respeito dos quais perdemos a capacidade de compreender sua humanidade, que as fotografias de Restiffe são feitas.