Folha de S. Paulo


Larguem o osso

A saída de Eduardo Cunha da presidência da Câmara é uma boa notícia, mas demorou e, triste, veio para alimentar a percepção de que a renúncia no Brasil é sempre um ardil para negociar uma jogada salvadora quando outras empulhações se inviabilizam.

O peemedebista já deveria ter sido afastado no ano passado, quando foram expostas as contas secretas que ele havia solenemente negado manter no exterior. Pego na mentira e em outras denúncias, Cunha manteve a fleuma (até onde a memória vai, sem precedentes) e se agarrou ao cargo.

A rigor, ele entregou oficialmente agora algo que já não tinha desde maio, quando o Supremo Tribunal Federal suspendeu seu direito de exercer atividades parlamentares —mesmo assim, o fez tirando da manga uma jogada que agride qualquer um que tenha um tanto de brio e outro de neurônios. O deputado quer que seus processos na Comissão de Ética voltem à estaca zero, porque ele passou da condição de presidente da Câmara à de deputado. Convém não duvidar do sucesso da empreitada.

Cunha é só a face mais escandalosa de um fenômeno predominante no cenário político, o do desprezo absoluto por conceitos como dignidade, retidão ou respeito à coisa pública. Tudo é firula quando o que importa é salvaguardar status, cargos e benesses.

A lista é vasta e pode começar pelo vizinho de Congresso Renan Calheiros, que em 2007 renunciou à presidência do Senado para salvar o mandato, mas nomes não faltam para comprovar a tese.

Inimiga visceral de Cunha, Dilma Rousseff aproveitou a deixa para ironizar o adversário e se autolouvar. "Mulher não renuncia, porque mulher não cede à luta". Tudo bem se "a luta", no caso da presidente afastada, significa tentar manter o privilégio de viajar pelo país nos jatos da Força Aérea Brasileira, jogando nas costas do contribuinte os custos de uma agenda política raquítica, feita de encontros com algumas dezenas de militantes da sua causa (sem esquecer de mencionar que a existência do direito a voo livre estendido a tantos é uma excrescência antirrepublicana).

É a mesma falta de cerimônia com o dinheiro público que levou 66 integrantes do governo afastado a pedir quarentena remunerada por seis meses, incluindo gente que poderia simplesmente reassumir o mandato ou voltar à atividade que exercia antes de ocupar cargos no Planalto. Sério que isso é parte da "luta política"?

Parece ser uma triste sina nacional que, mesmo depois de perder todas as condições políticas ou morais para governar ou legislar, ninguém se sinta impedido de fazer tudo para continuar, nem se avexe de submeter as instituições e a população a julgamentos que se prolongam inutilmente, drenando recursos e tempo, coisas que o país não tem.


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