Folha de S. Paulo


A civilização e seus descontentes

SÃO PAULO - Numa das melhores cenas da trilogia "De Volta para o Futuro", Emmett Brown, o cientista amalucado, pede a Marty McFly, o garoto que diz ter vindo do futuro, que prove falar a verdade revelando quem era o presidente dos EUA 30 anos depois, em 1985.

"Ronald Reagan", responde o garoto. "O ator? Então quem é o vice? Jerry Lewis?", ri o cientista.

Não é difícil imaginar cena semelhante, atualizando as datas e substituindo Reagan por Donald Trump. Até meses atrás, a reação da maioria ao ouvir o nome do empresário falastrão da franja controversa, do eterno bronze alaranjado e do beiço em bico como possível candidato republicano era semelhante à do dr. Brown.

De cientistas políticos a correligionários, passando por jornalistas especializados, muitos menosprezaram as chances dele. Tiveram de engolir o que falaram —ou escreveram.

Alguns literalmente. O celebrado colunista Dana Milbank, do "Washington Post", gravou um vídeo em que almoça seu texto de 2015 em que dizia que, se Trump fosse escolhido, ele comeria suas palavras.

Hoje, cálculos do mago da estatística Nate Silver dão a Trump 42,4% do voto popular nas eleições de novembro e a Hillary Clinton 48,7% —a democrata deve vencer o pleito, diz ele. Mas o republicano terá chegado perigosamente perto da Casa Branca.

A persistência de Trump, a longevidade do socialista radical Bernie Sanders, que deu trabalho a Hillary nas primárias, e o Brexit, a decisão dos britânicos de deixar a UE, parecem fruto de um mesmo desconforto.

No lado econômico, é a expressão dos excluídos da globalização, que ocupavam empregos tornados anacrônicos. Viraram terreno fértil onde brotou o discurso xenófobo.

No campo político, são os desiludidos com o sistema democrático, os que acham que a solução dos problemas passa ao largo da política.

Mais velhos, no primeiro caso; mais jovens, no segundo. Na contramão da história, os dois.


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