Folha de S. Paulo


Para se alfabetizar de verdade, Brasil deve se livrar de algumas ideias tortas

Ricardo Matsukawa - 23.nov.14/UOL
SAO PAULO - SP - BRASIL - 23/11/2014? VESTIBULAR UNICAMP. Candidatos realizam a prova da primeira fase do vestibular da Unicamp na unidade da Unip na rua Vergueiro, em São Paulo, capital. (Foto: Ricardo Matsukawa/UOL).******EMBARGADO PARA USO EM INTERNET******* ATENCAO: PROIBIDO PUBLICAR SEM AUTORIZACAO DO UOL ORG XMIT: AGEN1411231711208826
Prova da primeira fase do vestibular da Unicamp na unidade Vergueiro da Unip, em São Paulo
Tirando de Letra
Wilma Moura, Chico Moura
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Lendo um bom, sóbrio e sensato guia de escrita, o recém-lançado "Tirando de Letra", de Chico e Wilma Moura, penso nos obstáculos que o Brasil precisará superar se quiser ser um país realmente alfabetizado.

Estamos longe disso. A última pesquisa de analfabetismo funcional do Instituto Paulo Montenegro, de 2015, encontrou uma fatia, praticamente um estilhaço, de apenas 8% de alfabetizados "proficientes".

Isso não quer dizer que 92% dos brasileiros sejam analfabetos funcionais, e sim que o sistema falhou em graus variados com os que se situam nos demais patamares da habilidade de ler e escrever –o intermediário (23%), o elementar (42%), o rudimentar (23%) e, claro, o analfabeto propriamente dito (4%).

Mapear as correlações entre esse desastre educacional-cognitivo e as misérias político-sociais que nos afogam é tarefa que exigiria pesquisa cascuda e um saber maior que o meu. Deixo-a à imaginação de cada um.

Também não vou me alongar num tema que merece capítulo à parte, o da disfunção curricular. Aquela que obriga milhões de adolescentes à decoreba de listas fúteis de figuras de linguagem (catacrese, polissíndeto, zeugma...) ao mesmo tempo que é incapaz de levá-los a se apaixonar por um único livro durante toda a vida escolar.

Quero falar aqui de outras ideias tortas sobre escrita e leitura que contribuem para a perpetuação de nossos problemas de escrita e leitura.

Guias práticos como o dos Mouras, o de William Zinsser e o de Steven Pinker, para citar lançamentos recentes, são úteis, mas nada podem fazer contra a alfabetização precária. Apenas a minoria situada no nível proficiente e, vá lá, em parte do intermediário pode tirar proveito dessas dicas e reflexões.

E saber ler tampouco basta. Quem não deixar o terreno da potência para ler de fato, e muito, também não conseguirá passar de um nível básico de escrita. E depois disso ainda faltará enfrentar um denso matagal de mitos.

Meses atrás, quando falei aqui do livro de Zinsser, um leitor deixou o seguinte comentário: "É de uma pretensão sem tamanho, a vaidade elevada ao maior grau, o sujeito se meter a querer ensinar os outros a escrever".

Pois é. Muita gente acredita que, ao contrário de todas as demais atividades humanas, da música à mecânica de automóveis, do macramê à bocha, a escrita não pode ser ensinada. Por quê?

Porque é especial demais, elevada demais, dizem alguns. É o caso do leitor citado, que completou seu comentário com esta pérola: "Saber escrever é uma questão de talento, quem não tem, não vai nunca aprender..."

Há os que chegam à mesma conclusão pelo lado oposto, a ilusão de que toda pessoa alfabetizada domina a escrita, e o resto é joguinho de poder espúrio. Uma leitura rasa da sociolinguística costuma desaguar nesse pântano de conformismo.

Talento literário é raro mesmo, mas não se trata disso. Também não estamos falando só de correção gramatical e ortográfica, aspecto que será cada vez mais delegado à inteligência artificial.

Estamos falando de pensamento. Escrever com clareza e precisão, sem matar o leitor de confusão ou tédio, é uma riqueza que deve ser distribuída de forma igualitária por qualquer sociedade que se pretenda civilizada e justa.


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