Folha de S. Paulo


Discreta, mas onipresente, a palavra do ano no Brasil é 'falência'

Robson Ventura/Folhapress
Sao Paulo, SP 23/09/2016 Brasil Crise afeta lojas do Bras, Lojas fechada na rua Maria Joaquina que foi uma das mais afetadas pela crise. Lojas do numero 247 ao 255 que estao fechadas Robson Ventura/Folhapress. EMBARGADA PARA VEICULOS ONLINE *** UOL E FOLHA.COM E FOLHAPRESS CONSULTAR FOTOGRAFIA DO AGORA *** FONES 32242169 3224 3342 ***
Crise econômica fecha lojas no Brás, área de intenso comércio na região central de São Paulo

Enquanto o mundo se engalfinha com "pós-verdade" e suas concorrentes, a tarefa de eleger a palavra do ano no Brasil nos lança num buraco mais fundo. Não que o país seja imune ao novo ambiente digital de descompromisso da versão com os fatos. Acontece que nosso surto mais agudo de pós-verdade ocorreu há dois anos, quando Dilma Rousseff venceu a eleição bloqueando com tapumes a visão do abismo.

Agora que despencamos, debater a pós-verdade soa (quase) como frescura. Questões de sobrevivência material sempre dão um jeito de ganhar prioridade.

Às vezes a palavra que define uma época ou um momento é discreta. Parece um paradoxo, mas não: justamente por ser onipresente é que ela tenta ficar invisível, fundida à paisagem. Enquanto outros termos são gritados alternadamente em megafones, o vocábulo-síntese é o ruído de fundo que nunca cessa.

O escritor americano David Foster Wallace contou certa vez a fábula dos peixinhos jovens que, indagados sobre como está a água, se entreolham confusos: "Água? O que é água?". É por isso que a palavra de 2016 no Brasil é "falência", do latim tardio "fallentia", parente da falha e do falecimento.

Enquanto a falência generalizada, polissêmica, ia roendo as fundações da rotina com o silêncio daqueles cupins parrudos do filme "Aquarius", outras palavras e expressões se candidatavam ao título de mais gritadas do ano: "golpe"/"impeachment", "fora, Dilma"/"fora, Temer", "coxinhas"/"petralhas". Todas com pontos de exclamação embutidos.

Como se vê, elas formam pares. Metade do país gritava uma e ouvia a outra de volta, como um eco distorcido. O problema é que ninguém encontra a palavra do ano de uma língua ou país conversando com metade dos falantes. É preciso ir além, buscar a transcendência. Ou ficar aquém, cavucando o solo comum.

Num caso e no outro, encontramos "falência".

O sentido mais óbvio da palavra é econômico: o de quebra, bancarrota, insolvência. O país faliu. Os Estados faliram. Os municípios estão falindo. Pessoas jurídicas e físicas se deparam em peso com a possibilidade da insolvência –em muitos casos concretizada. Os pedidos de recuperação judicial bateram recorde. O desemprego atingiu 12 milhões de brasileiros. Em todas as regiões, não há galeria ou rua comercial em que o número de lojas fechadas deixe de chamar a atenção de quem, dinheirinho contado, ainda se arrisca por lá.

Ocorre que "falência" tem outros sentidos. A tarefa histórica de fazer frente à derrocada econômica de um Estado morbidamente obeso, perdulário, ineficiente e ladrão coube a um Executivo sem legitimidade, sitiado por acusações graves e secundado por um Legislativo e um Judiciário que são parte do mesmo modelo falido.

É essa falência mais ampla –política, institucional, moral– que tira a razão de todos. Queira-se ou não, condenar a fixação de um teto para os gastos públicos é fazer bilu-bilu no Estado morbidamente obeso, perdulário, ineficiente e ladrão. Já quem aplaude a PEC aprovada terça-feira (13) corre o risco de pôr na cabeça o chapéu cônico de burro por acreditar que, nas mãos das quadrilhas que nos governam, ela será usada para construir um país mais responsável e não para aguçar a perversidade social dos privilégios de sempre.

Mas 2017 está aí mesmo. A falência só é total quando corrói até mesmo a teimosia.


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